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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E

deram um tiro.

Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube.

Sempre sei quando um tiro é tiro – isto é – quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura.

Apertei minha correia na cintura, o seguinte emendando: que nem sei como foi. Antes de saber o que foi, me fiz nas minhas armas. O que eu tinha era fome. O que eu tinha era fome, e já estava embalado, aprontado.

Às tantas o senhor assistisse àquilo: uma confusão sem confusão. Saí da janela, um homem esbarrou em mim, em carreira, outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo – as ordens, de sobrevoz. Aonde, o quê? Todos eram mais ligeiros do que eu?

Mas ouvi: – “... Mataram o Simião...” Simião? Perguntei: – “E o Doristino?” – “Ãã? Homem, não sei...” – alguém me respondendo. – “Mataram o Simião e o Aduvaldo...” E eu ralhei:

– “Basta!” Mas, sobre o instante, virei: – “Ah, e o Fafafa?” O que ouvi: – “Fafafa, não. Fafafa está é matando!...” Assim era, real, verdadeiramente de repente, caído como chuva: o rasgo de guerra, inimigos terríveis investindo. – “São eles, Riobaldo, os Hermógenes!” – Diadorim aparecido ali, em minha frente, isto

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas falou. Atiraram um horror, duma vez, tiros e tiros que estavam contra nós desfechando. Atiravam nas construções da casa. Diadorim sacripante se riu, encolheu um ombro só. Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu.

Respirei os pesos. “Agora, agora, estamos perdidos sem socorro...” – inventei na mente.

E raciocinei a velocidade disto: “Ser pego, na tocaia, é diverso de tudo, e é tolo...” Assim enquanto, eu escutando, na folha da orelha, as minúcias recontadas: as passadas dos companheiros, no corredor; o assoviar e o dar das balas – que nem um saco de bagos de milho despejado. Feito cuspissem – o pôr e pôr! Senti como que em mim as balas que vinham estragar aquela morada alheia de fazenda. Medo nem tive, não deu para ter – foi outra noção, diferente. Me salvei por um espetar de pensamento: que Diadorim, cenho franzindo, fosse mandar eu ter coragem! Ele nem disse. Mas eu me inteirei, ligeiro demais, num só destorcer. – “Eh, pois vamos! É a hora!” – eu declarei, pus a mão no ombro dele. Respirei depressa demais. Aquele me apatetar – saiba o senhor – não deve de ter durado nem os menos minutos. No átimo, supri a claridade completa de idéia, o sanguefrio maior, essas comuns tranqüilidades. E, por aí, eu sabia mesmo exato: a gente já estava debaixo de cerco.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Achei especial o jeito de João Concliz vir, ansiado cauteloso. Ação em que qualquer um anda – nessas semelhantes ocasiões – só encostado nas paredes – “Você fica aqui, mais você, e você... Você dessa banda... Você ali, você-aí acolá...” –

arrumação ele ordenava. – “Riobaldo, Tatarana: tu toma conta desta janela... Daqui não sai, nem relaxa, por via nenhuma...”

Arredado, lá embaixo avistei Marcelino Pampa indo para as senzalas, com uns cinco ou seis companheiros. Com outros, Freitas Macho corria para a tulha; e para o engenho uns junto com Jõe Bexiguento, dito “Alparcatas”. Meus peitos batendo tresdobro forte, eu dividido naquela alarida. A grave escorei meu rifle, limpo, arma minha, amásia. Ainda reconheci o Dimas Doido e o Acauã, deitados atrás do cruzeiro do pátio. Um daqueles urucuianos apareceu, mais outro, traziam balaio grande, com algodão em rama. Mais homens, com sacos de sabugos; foram buscar outros sacos, carregavam um caixote também. Tudo eles estavam transportando, por entranqueirar o pátio de fora: tábuas, tamboretes, cangalhas e arreios, uma mesa de carapina retombada. Arranjos de guerra – esses são engenhados sempre com uma graça variada, diversa dos aspectos de trabalho de paz – isto vi; o senhor vê: homens e homens repulam no afã tão unidamente, sujeitos maneiros, feito

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o meigo do demo assoprasse neles, ou até mesmo os espíritos!

Suspirei, de bestagem. Ao menos alguém fungou e me cutucou, era o Preto Mangaba, mandado guarnecer ali, comigo junto.

Preto Mangaba me oferecia dum pão de doce-de-buriti, repartia, amistoso. Eu então me alembrei de que estava com fome. Mas Quim Queiroz trazia mais munição, ele ajudado por alguns; arrastavam um couro, o couro esse cheio repleto de munição, arrastavam no assoalho do corredor. Da janela da outra banda, pus o olhar, espiei o desdém do mundo, distâncias. Abalavam fogo contra a gente, outra vez, contra o espaço da casa. Ixe de inimigo que não se avistava. Somente eu queria saber era se agüentava manejar, como era que estava sentindo meu braço. Aí ergui mão para coçar minha testa, aí me cismei: e fiz, com todo o respeito, o pelo-sinal. Sei que o cristão não se concerta pela má vida levável, mas sim porém sucinto pela boa morte – ao que a morte é o sobrevir de Deus, entornadamente.

Atirei. Atiravam.

Isso não é isto?

Nonada.

A aragem. Diadorim onde estivesse? Soube que ele parava em outro ponto, em seu posto em praça. Sustentava, picando

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas alvos a para a frente, junto com o Fafafa, o Marruaz, Guima e Cavalcânti, na barra da varanda. Todo lugar não era lugar? Não se podendo esbarrar, de jeito nenhum, no arrebentar, nas manivelas da guerra. Aprendi os momentos. Assim, assazmente, João Concliz tornava a vir, zelante, com Alaripe, José Quitério e Rasga-em-Baixo. – “Espera!” – ele mandou. Pelo que vinham também o Pitolô e o Moçambicão, puxando uns couros de boi.

Esses couros inteiros eram para a gente pregar lá em riba, nas padieiras, ficarem dependurados de cortinado bambo, nos vãos das janelas. Depois, o Pacamã-de-Presas mais o Conceiço, socavando com ferramenta, a fito de abrir torneiras nas paredes –

por onde buraco de se atirar. Aquela guerra ia durar a vida inteira? O que eu atirava, ouvia menos. Mas o dos outros: assovios bravos, o achispe, isto de ferro – as balas apedrejadas. Eu e eu.

Até meus estalos, que a cada, no próprio do coração. À mira de enviar um grão de morte acertado naquelas raras fumaças dançáveis. Assim é que é, assim.

Ah! E então, aí, no súbito aparecer, Zé Bebelo chegou, se encostou quase em mim. – “Riobaldo, Tatarana, vem cá...” – ele falou, mais baixo, meio grosso – com o que era uma voz de combinação, não era a voz de autoridade. A de ver, o que ele quisesse de mim? Para eu passar avante na posição, me transpor

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para um lugar onde se matar e morrer sem beiras, de maior marca? Andei e segui, presente que, com Zé Bebelo, tudo carecia mais era de ser depressa. Mesmo me levou. Mas me levou foi para um outro cômodo. Ali era um quarto, pequeno, sem cama nenhuma, o que se via era uma mesa. Mesa de madeira vermelha, respeitável, cheirosa. Desentendi. Dentro daquele quarto, como que não entrava a guerra. Mas o pensar de Zé Bebelo – ansiado eu sabia – era coisa que estralejava, inventaste e forte.

– “Mais antes larga o rifle aí, deposita...” – ele falou. O

depor meu rifle? Pois botei, em cima da mesa, esquinado de través, botei com o todo cuidado. Ali se tinha lápis e papel. –

“Senta, mano...” – ele, pois ele. Ofereceu a cadeira, cadeira alta, de pau, com recosto. Se era para sentar, assentei, em beira de mesa. Zé Bebelo de revólver pronto na mão, mas que não contra mim – o revólver era o comando, o constante revirar e remexer da guerra. E ele nem me olhou, e me disse:

– “Escreve...”

Caí num pasmo. Escrever, numa hora daquelas? O que ele explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender. Era? Não sou cão, não sou coisa. Antes isto, que sei, para se ter ódio da vida: que força a gente a ser filho-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pequeno de estranhos... “Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar...” – me lembrei dessas palavras. Mas palavras que, em outra ocasião, quem tinha falado era Zé Bebelo, mesmo.

– “Escreve...”

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