"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Ele nem deu ar de interesse no fato, não me agradeceu por isso; perguntou nada. Disse:

- “A bexiga do Sucruiú já terminou. Estou ciente dos que morreram: foram só dezoito pessoas...”

E o que indagou foi se eu soubesse se tinham feito muitos estragos nos canaviais. – “... O que eles deixaram em pé, e que

– 590 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas lobo ou mão-pelada não roeram, sempre há-de dar uns carros, se move moagem...” Agora ele conservava os olhos sem olhar, num vagar vago, circunspecto, pensava aqueles capítulos. Disse que ia botar os do Sucruiú para o corte da cana e fazeção de rapadura. Ao que a rapadura havia de ser para vender para eles do Sucruiú, mesmo, que depois pagavam com trabalhos redobrados. De ouvir ele acrescentar assim, com a mesma voz, sem calor nenhum, deu em mim, de repente, foram umas nervosias. Ao que, aqueles do Sucruiú, fossem juntas-de-bois em canga, criaturas de toda proteção apartadas. Mas eu não tinha raiva desse seô Habão, juro ao senhor, que ele não era antipático. Eu tinha era um começo de certo desgosto, que seria meditável. – “Para o ano, se Deus quiser, boto grandes roças no Valado e aqui... O feijão, milho, muito arroz...” Ele repisava, que o que se podia estender em lavoura, lá, era um desadoro. E

espiou para mim, com aqueles olhos baçosos – aí eu entendi a gana dele: que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal: cobiçava a gente para escravos! Nem sei se ele sabia que queria. Acho que a idéia dele

– 591 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não arrumava o assunto assim à certa. Mas a natureza dele queria, precisava de todos como escravos. Ainda confesso declarado ao senhor: eu não tivesse raiva daquele seô Habão.

Porque ele era um homem que estava de mim em tão grandes distâncias. A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz... Zé Bebelo, que esses projetos ouvisse, ligeiro logo era capaz de ficar cheio de influência: exclamar que assim era assim mesmo, para se transformar aquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias, para um bom Governo, para esse ô-Brasil! Em peta, que, um seô Habão, esse não se entusiasmava. Era só os carros-de-bois carreando a cana. E ele dava ordens. Ordem que dava, havia de ser costumeira e surda, muito diferente da de jagunço. Cada pessoa, cada bicho, cada coisa obedecia. Nós íamos virando enxadeiros. Nós? Nunca! Mas, então, eu antes queria ver chegar duma vez os do Hermógenes, em galopadas e gritos, berrando rifles em todo fogo, e ai para se ouvir, e sangue

– 592 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para quem ver pudesse. Aí era que iam saber o que sebaceiro é!

E, por um despique, foi que acertei meu correão com as armas; e pronunciei:

– “Duvidar, seô Habão, o senhor conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!”

Pensei que ele nem fosse acreditar. Mas, juro ao senhor: ele me olhou com muitos outros olhos. Aquele olhar eu agüentei, facilitado. Seô Habão sacudia em sim a cabeçona, surpreendido mas circunstante. – “Dou notícia... Dou notícia...” – ele quase que se lastimou. Nem sei se ele sabia que meu Padrinho Selorico Mendes fosse, como era, muito mais fornecido de renome e avultado em posses, conforme até por estes sertões do gerais se contava. Regozijei, devagar; mas não regozijei completo. Do que destapei: que um desses, com a estirpe daquele seô Habão, tirassem dele, tomassem, de repente, tudo aquilo de que era dono

– e ele havia de choramingar, que nem criancinha sem mãe, e tatear, toda a vida, feito ceguinho catando no chão o cajado, feito quem esquenta mãos por cima dum fogo fumacento. A misericórdia, também, eu quase tive. Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza. De ver o homem, em pé, diante de mim, recrescer e tornar a minguar – isto tudo no meu juízo – nem sei

– 593 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de que estimas me esquecia e de que outras me lembrava. E, com pouco, no rebaixar do sol, ele tornou a amontar no seu cavalo gateado, belo, e se foi, de rompido, no rumo torto do Valado.

Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor retardei: devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez. Pois foi que o vaqueiro tal, que acompanhava o seô Habão, em conversa distraída com algum ou com outro, por acasos mencionou que um bando de uns dez homens, jagunços também, pelo dito e visto, andavam parapassando, como que à espera de destino, em entre o Fazendão Felício – que é na beira da estradamor para esse poente todo – e o Porto velho da Remeira, no rio Paracatu – aonde, menos dia, mais dia, todo o mundo acaba vindo chegando. Depressa então falaram o assunto ciente para Zé Bebelo, que reconheceu, pela descrição: – “Chagas de Cristo! É eles, ei, egüei... Só pode que pode ser é mesmo o João Goanhá, com uns outros...” E instantâneo expediu, para lá, dois próprios, que tocassem ligeiro como sem senões e voltassem trazendo os comparsas amigos. Isso com a certa alegria se ouviu, porque eram novidades acontecendo.

– 594 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Afora eu. Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O aquilo. Ah, que – agora eu ia! Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por quê? Tem alguma ocasião diversa das outras? Declaro ao senhor: hora chegada. Eu ia. Porque eu estava sabendo – se não é que fosse naquela noite, nunca mais eu ia receber coragem de decisão.

Senti esse intimado. E tanto mesmo nas idéias pequenas que já me aborrecendo, e por causa de tantos fatos que estavam para suceder, dia contra dia. Eu pensava na vinda de João Goanhá, e que a gente carecia de sair de novamente por ali, por terras e guerras. Pensei naquele seô Habão, que nem num transtorno?

Mais não sei. E essas coisas desconvinham em mim, em espécie de necessidade. A não me apartar à-toa dali – das Veredas-Mortas!

Sombra de sombra, foi entardecendo; fuscava. Ao que eu estivesse destemido, soberbo? Da mão peluda, eu firme estava.

Fazia muito tempo que eu não descabia de tão em arrojo. Dou: que nunca, feito naquela hora, e em aquele dia. Somente com a alegria é que a gente realiza bem – mesmo até as tristes ações.

Retrocedi de todos. De Zé Bebelo, demais: que ele havia de

– 595 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas desconfiar, dizer o que era desordens que cabeça de homem não cogita. De Diadorim refugi. Ah, deixa a agüinha das grotas gruguejar sozinha. E, no singular de meu coração, dou dito: o que eu gostava tanto de Diadorim, tinha um escrúpulo – queria que ele permanecesse longe de toda confusão e perigos. Há-de, essa lembrança branda, de minha ação, minha Nossa Senhora ainda marque em meu favor. Deus me tenha!

Adjaz o campo, então eu subi de lá, noitinha – hora em que capivara acorda, sai de seu escondido e vem pastar. Deus é muito contrariado. Deus deixou que eu fosse, em pé, por meu querer, como fui.

Eu caminhei para as Veredas-Mortas. Varei a quissassa; depois, tinha um lance de capoeira. Um caminho cavado.

Depois, era o cerrado mato; fui surgindo. Ali esvoaçavam as estopas eram uns caborés. E eu ia estudando tudo. Lugar meu tinha de ser a concruz dos caminhos. A noite viesse rodeando.

Aí, friazinha. E escolher onde ficar. O que tinha de ser melhor debaixo dum pau-Cardoso – que na campina é verde e preto fortemente, e de ramos muito voantes, conforme o senhor sabe, como nenhuma outra árvore nomeada. Ainda melhor era a capa-rosa – porque no chão bem debaixo dela é que o Careca

– 596 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dança, e por isso ali fica um círculo de terra limpa, em que não cresce nem um fio de capim; e que por isso de caparosa-do-judeu nome toma. Não havia. A encruzilhada era pobre de qualidades dessas. Cheguei lá, a escuridão deu. Talentos de lua escondida. Medo? Bananeira treme de todo lado. Mas eu tirei de dentro de meu tremor as espantosas palavras. Eu fosse um homem novo em folha. Eu não queria escutar meus dentes.

Desengasguei outras perguntas. Minha opinião não era de ferro?

Eu podia cortar um cipó e me enforcar pelo pescoço, pendurado morrendo daqueles galhos: quem-é-que quem que me impedia?! Eu não ia temer. O que eu estava tendo era o medo que ele estava tendo de mim! Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.

Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O

– 597 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado.

Arrepia os cabelos das carnes.

E não conheci arriação, nem cansaço.

Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jajão. Mas, em que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem.

De repente, com um catrapuz de sinal, ou momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar – tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno – ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar, desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso, para mais medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de

– 598 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa,° esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!

E foi assim que as horas reviraram. – A meia-noite vai correndo... – eu quis falar. O cote que o frio me apertava por baixo. Tossi, até. – “Estou rouco?” – “Pouco...” – eu mesmo sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o tempo – espiando para cima, para esse céu: nem o setestrelo, nem as três-marias, – já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro dos ramos. E

qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se ver.

Ao que não vinha – a lufa de um vendaval grande, com Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro.

O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “Deus ou o demo?” – sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que?

Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras, tudo meu, tudo

– 599 –

Are sens