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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ao que, já se estava no ponto. Anoitecido. A uma estrela se repicava, nos pretos altos, o que vi em virtude. A estrelinha, lume, lume. Assim – quem era que tinha podido mais? Zé Bebelo, ou eu? Será, quem era que tinha vencido?

Quite com isso, no cumprir, entreguei os destinos.

O truztruz. Com pouco, nesse passo, os todos homens se apessoando, no corpo daquele corredor – as fileiras em mexe-mexe desde a sala-defora até à cozinha, sobre mais entre os conspirados silêncios, os movimentos com energias. Arte e tanto, Zé Bebelo expunha o que recomendava. Sempre uma ou outra lamparina se acendeu, para os companheiros empalidecidos.

Agora a gente ia romper a pé, sem os recursos, dava dó era a quantia de munição de se largar ali, no se pôr em salvo. Assaz, então, tudo o que possível se encheu, de balas e caixas – os bornais e capangas, patronas e cartucheiras. Mas não bastava. A ser que, daí, um inventou uma fronha de cama: a que, presada com correia ou corda, para tiracol, concabia tiros em boa dose; e muitos assim aproveitavam, logo não restou fronha a dispor.

Mesmo, a alguma matula, também, se devia, por garantir. Desde aí, no concorrer, se saía por uma porta. O quanto a noite se atravava de bom grosso. Adiante primeiro foram mandados João

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Concliz, Moçambicão e Suzarte, para reconhecerem se estava limpo o caminho, rumo de fuga, sem o estorvável. Ponto que os poucos feridos, que havendo, se queixavam em condições, mesmo o Nicolau, que se escorava no rifle e às vezes se retardava. Só ficando na Casa os mortos, que não careciam de se rezar a eles adeus, os soldados amanhã que viessem, que enterrassem.

Soformamos diversos golpes, acho que cinco, Diadorim e eu entramos no derradeiro, com o comando do próprio Zé Bebelo; e com o Acauã, o Fafafa, Alaripe e Sesfredo, que acompanhavam comigo. Saíram os de primeiramente, iam um ante outro – como um rio a buscar baixo; ou um cão, cão. A gente demorava.

Aquela cozinha grande, no cabo do negócio, muito aprisionava, de sobreleve; e contei os companheiros, as respirações. Saíram outros e outros. Dos dianteiros, nem se percebia rumor. Toda a hora eu esperava um tiro e um grito de alto-lá-o-rei! Mas era só o tremer daquela paz em proporção. Admirei Zé Bebelo. A vez nossa chegada, ali o acostumar os olhos com o outro mudar.

Abaixamos, e saímos também. Semoveu-se.

Livrados! No escuso, o tudo ajudando, fizemos passagem, avante mais. Tempo que andamos, contracalados, soprando o sangue para se esfriar; até que se cobrou veras de perigo não haver, no regozijo de poupados de qualquer espreita ou

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas agredimento. Se esbarrou, para ar, um sueto de uns momentos. –

“Não é que o gato ficou lá...” – um, risonho, falou. – “Ah, demais. A lá é a Casa...” – outro se pôs. Aquela à-morte fazenda-grande dos Tucanos. Vai, eu, o cheiro fartado, bom, de folhas folhagens e do capim do campo, enunciou em meu lembrar o mau-cheiro dos defuntos, que agora próprio no meu nariz eu nem não aventava mais. E Zé Bebelo, segredando comigo, espiou para trás, observou assim, pegando na minha mão: –

“Riobaldo, escuta, botei fora minha ocasião última de engordar com o Governo e ganhar galardão na política...” Era verdade, e eu limpei o haver: ele estava pegando na mão do meu caráter. Aí, aclarava – era o fornido crescente – o azeite da lua. Andávamos.

Saiba o senhor, pois saiba: no meio daquele luar, me lembrei de Nossa Senhora.

A de entre, entramos, pela esquerda e rumo do norte.

Desde o depois, o do poente mesmo. Com foras e auroras, estávamos outra vez no público do campo. Antes da manhã, agora se passava a Vereda-Grande, no Vaudos-Macacos. Ao que, em rompendo a luz toda da manhã, se chegou no sítio dum Dodó Ferreira, onde a gente bebeu leite e os meus olhos pulavam nas árvores. Aquilo, de verdade, e eu em mim – como um boi que se sai da canga e estrema o corpo por se prazer.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Assim foi que, nesse arraiar de instantes, eu tornei a me exaltar de Diadorim, com esta alegria, que de amor achei. Alforria é isso.

Sobre mesmo a pé, e com o peso completo, caminhar pelos Gerais parecia que pouquinho me cansava. Diadorim – o nome perpetual. Mas os caminhos é que estão se jazendo em tudo no chão, sempre uns contra os outros; retorce que os falsíssimos do demo se reproduzem. O senhor vá me ouvindo, vá mais me entendendo.

No sítio desse Dodó Ferreira, o Nicolau e o Leocádio iam ficar acoitados lá, até que pudessem sarar de todo somenos.

Nós, não. De que desde dali, rifles nas costas, riscamos de rota abatida para o Currais-do-Padre, para renovame; porque lá se tinha resguardada uma boa cavalaria. À força de inchar pé e esmorecer pernas, pelo que aquilo nem foi viagem: era rojão de escabrear, menção de cativeiros. Desgraça de estrada, as pedras do mundo, minhas léguas arrependidas. De que serve eu lhe contar minuciado – o senhor não padeceu feliz comigo – ? Saber as revezadas do capim? Ah, então, que foram: mimoso, sempre-verde, marmelada, agrestes e gramade-burro... A caminhada é assim, é ser: despesa grossa, o abalo. Contra a mera vontade, que meio me lembro, aquelas ladeiras de chapadas. Subindo para terreno concertado, cada tabuleiro que o fim dele é dificultoso,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pior do que batoqueira de caatingal. Os muitos campos, com tristeza agora bota valesse menos que alpercata. O vento endureceu. Aí passa gavião, apanha guincho, de todas as estirpes deles – o que gaviãozinho quiriquitou! E lá era que o senhor podia estudar o juízo dos bandos de papagaios. O quanto em toda vereda em que se baixava, a gente saudava o buritizal e se bebia estável. Assim que a madotagem desmereceu em acabar, mesmo fome não curtimos, por um bem: se caçou boi. A mais, ainda tinha araticum maduro no cerrado. Mas, para balear uma rês da solta, era o mister de toda sorte e diligência, por ser um gado estruso, estranhador. O fumo de pitar se acabando repentino na algibeira de uns e outros – bondade dos companheiros era que acudia. E deu daquele vento trazedor: chegou chuva. A gente se escondendo, divididos, embaixo dos pequizeiros, que tempesteava. Dormir remolhado, se dormia, com a lama da friagem. De madrugar, depois, se achava era pé de onça, circulando as marcas. E a gente ia, recomeçado, se andava, no desânimo, nas campinas altas. Tão território que não foi feito para isso, por lá a esperança não acompanha. Sabia, sei. O pobre sozinho, sem um cavalo, fica no seu, permanece, feito numa croa ou ilha, em sua beira de vereda. Homem a pé, esses Gerais comem.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Diadorim vinha constante comigo. Que viesse sentido, soturno? Não era, não, isso eu é que estava crendo, e quase dois dias enganoso cri. Depois, somente, entendi que o emburro era mesmo meu. Saudade de amizade. Diadorim caminhava correto, com aquele passo curto, que ó dele era, e que a brio pelejava por espertar. Assumi que ele estava cansado, sofrido também. Aí mesmo assim, escasso no sorrir, ele não me negava estima, nem o valor de seus olhos. Por um sentir: às vezes eu tinha a cisma de que, só de calcar o pé em terra, alguma coisa nele doesse. Mas, essa idéia, que me dava, era do carinho meu. Tanto que me vinha a vontade, se pudesse, nessa caminhada, eu carregava Diadorim, livre de tudo, nas minhas costas. Até, o que me alegrava, era uma fantasia, assim como se ele, por não sei que modo, percebesse meus cuidados, e no próprio sentir me agradecendo. O que brotava em mim e rebrotava: essas demasias do coração. Conti-nuando, feito um bem, que sutil, e nem me perturbava, porque a gente guardasse cada um consigo sua tenção de bem-querer, com esquivança de qualquer pensar, do que a consciência escuta e se espanta; e também em razão de que a gente mesmo deixava de excogitar e conhecer o vulto verdadeiro daquele afeto, com seu poder e seus segredos; assim é que hoje eu penso. Mas, então, num determinado, eu disse:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção...” – o qual era a pedra de safira, que do Araçuaí eu tinha trazido, e que à espera de uma ocasião sensata eu vinha com cautela guardando, enrolada numa pouca de algodão, dentro dum saquitel igual ao de um breve, costurado no forro da bolsa menorzinha da minha mochila.

De desde que falei, Diadorim quis muito saber o presente qual era, assim apertando comigo com perguntas, que sem aperreio deixei de responder, até de tarde, quando fizemos estância. A parança que foi – conforme estou vivo lembrado –

numa vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais, de água muito simplificada. Aí, quando ninguém não viu, eu saquei a mochila, desfiz a ponta de faca as costuras, e entreguei a ele o mi-mo, com estilo de silêncio para palavras.

Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos.

Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério, apertou os beiços; e, sem razão sensível nem mais, tornou a me dar a pedrinha, só dizendo:

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente assim, agora. Aí guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu recebo...”

Isso, de arrevés, eu li com hagá; e mesmo antes, quando apontou no rosto dele, para o avermelhar de cor, a palidez de espécie. Delongando, ainda restei com a pedra-de-safira na mão, aquilo dado-e-tomado. Donde declarei:

– “Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já é o depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus, nem sermão de sacramento. Não chegam os nossos que morremos, e os judas que matamos, para documento do fim de loca Ramiro?!”

Ah foi ele me ouvir e se encurtar, em duro que revi, que nem ossos. Ao crespo de um com a afronta a meia-goela – e os olhos davam o que deitavam. O que durou só um átimo, tanto que ele teve mão em seu gênio, conciso com um suspiro; mas mesmo me retrouxe remoque:

– “Riobaldo, você teme?”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Tomei sem ofensa. Mas muita era minha decisão, que eu já tinha aperfeiçoado lá na Fazenda dos Tucanos, e que só vinha esperando para executar com mais regimento de ordem, quando se tivesse chegado no Curraisdo-Padre, conforme meu sistema nesses procedimentos.

– “Tem que temerei! Você, aí faz o que em seu querer esteja. Eu viro minha boa volta...”

Dar o mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. Eu guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor botei, no bolso do cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim respirava muito.

Dele foi o relance:

– “Riobaldo, você pensa bem: você jurou vinga, você é leal. E eu nunca imaginei um desenlace assim, de nossa amizade...” – ele botou-se adiante. – “Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a guerra varia de figura...”

Arredei: – “Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me toca...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Da maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável diguice, queria abrandar minha opinião. Então eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu retraimento, de nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros – eu era o contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão!

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