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A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela gente do Alaripe. – “Pois vamos, Riobaldo!” – Diadorim se pôs.

Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada um engolia suas palavras. A mesmo estava o céu encoberto, e um mormaço.

Mas, na descambada, Diadorim me reteve, me entregou á ponta do cabresto para segurar. – “De tudo nesta vida a gente esquece, Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele?”

– me perguntou. Devo que retardei muito em responder, com cara de não compreensão. Porque Diadorim completou: – “...

dele, a glória do finado. Do que se finou...” E dizia aquilo com uma misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca vi. Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado pelas moitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do ca-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas valo. Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas demorou tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para o que havia ver, esporei e vim puxando o cavalo dele adestro. E aí o que vi foi Diadorim no chão, deitado debruços. Soluçava e mordia o capim do campo. A doideira. Me amargou, no cabo da língua. – “Diadorim!” – chamei. Ele, sem se aprumar, virou o rosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meus consolos, e ele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinho fosse, deixasse ele ali, até minha volta. – “Joca Ramiro era seu parente, Diadorim?” – eu indaguei, com muita cordura. – “Ah, era, sim...” – ele me respondeu, com uma voz de pouco corpo. –

“Seu tio, será?” – Que era... – ele deu, em gesto. Entreguei a ele o cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância, para prevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e disparei tiros, para o ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos, por meu feliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. – “Trago notícia de grande morte!” – sem desapear eu declarei. Eles todos tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: – “Viva a fama do nosso Chefe Joca Ramiro... “ E, pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam. Ao que quase todos choraram. – “Mas, agora, temos de vingar a morte do falecido!” – eu ainda pronunciei. Se aprontaram num átimo,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para comigo vir. – “Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria...” – no caminho o Alarípe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade.

Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romper das barras, saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, muito branco, os olhos pisados, a boca vencida. Deixamos para trás aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tão célebre – a Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais.

Redeando, rumamos, em tralha e torto, por aquele afora –

a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Os córregos estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas embrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas serras. A terrível notícia tinha se espalhado assaz, em todas as partes o povo fazia questão de obsequiar à gente, e falavam muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feito flecha, feito faca, feito fogo. Varamos todos esses distritos de gado.

Assomando de dia por dentro de vilórios e arraiais, e ocupando a cheio todas as estradas, sem nenhum escondimento: a gente queria que todo o mundo visse a vingança! Alto do Amoipira, quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João Goanhá,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e abriu seus bons braços. Ele estava com próprios trezentos guerreiros. E

sempre outros chegavam. – “Meu irmão Titão Passos... Meu irmão Titão Passos...” – ele falou, crescente. – “E vocês todos, valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga!” Disse que com três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca e no boi: não estava com por’oras. E Só Candelário, onde era que estava? Só Candelário, piorado doente, devia de estar um tempo desses nos Lençóis, para onde portador seguira, com pressa de chamado. Mesmo assim, João Goanhá desnecessitava de esperar por ele, para aos dois judas traidores dar batalha. No que achamos bom conselho. E outros vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quem não se imaginou: como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta e cinco cacundeiros – o que carregava nome de fama por todo o Rio VerdeGrande. E o velho Ludujo Filgueiras, montesclarense, com vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronel Digno de Abreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas, também, por Luís de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E o gado em pé que se provia, para se abater e se comer, chegava a ser uma boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café – até em carro-de-bois os mantimentos de fubá e

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas arroz e feijão entregados. Só em quantidades de munição era que a gente não produzia luxo, e Titão Passos se entristeceu de não poder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão esperada.

Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra.

Ãhã, do norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante da rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota, cunhado de Só Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindas que se escapassem para o poente, atravessassem o rio, ah, encontravam ferro e fogo: lá estava Medeiro Vaz – o rei dos Gerais!

Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora de paga e perdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz.

Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-de-pato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah, só Ela

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas me vale; mas vale por um mar sem fim... Sertão. Se a Santa puser em mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao senhor, e digo: paz. Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é que podia saber? E foram esses monstros, o sobredito. Ele vem no maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o cão-miúdo. Não é, mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo nenhum, por causa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem, protege com sua pessoa. Montado, mole, nas costas do Hermógenes, indicando todo rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim, dentro do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no lume dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. O

Hermógenes, que – por valente e valentão – para demais até ao fim deste mundo e do juízofinal se danara, oco de alma. Contra ele a gente ia. Contra o demo se podia? Quem a quem? Milagres tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir das unhas da gente, se escaparam – o Ricardão e o Hermógenes – os Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua, quarto-delégua, com toda sua jagunçama, e não vimos, não ouvimos, não soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir.

Avançaram, calados, escorregando pelos matos, ganhando o mais poente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sem a gente perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde, seu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pretume dela escondido no brancor do dia, se presume. Quando pudemos saber, a distância deles já era impossível. Nós estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem? E pois demore o senhor para o pior: o que veio em sobre!: os soldados do Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de todos os lados, de supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver cachorrada caçante. Soldados do Tenente Plínio – companhia de guerra. Tenente Reis Leme, outra. E veio depois, com muitos mais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca, esse bebia café em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos, rolamos por aí aqui, se rolou. vida é vez de injustiças assim, quando o demo leva o estandarte. Pois – aquela soldadama viera para o Norte era por vingar Zé Bebelo, e Zé Bebelo já andava por longes desterrado, e nisso eles se viravam contra a gente, que éramos de Joca Ramiro, que tinha livrado a vida de Zé Bebelo das facas do Hermógenes e Ricardão; e agora, por sua ação, o que eles estavam era ajudando indireto àqueles sebaceiros. Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonciável na capital do Estado?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem.

Combatemos o quanto mais pudemos – está aí. Consoante começou, no Curral de Vacas, perto do Morro do Cocuruto, onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois de grande fogo.

Fogo demos daí no Cutica, na Chapada Simão Guedes: mas rodaram com a gente, de retruz. Serra da Saudade: a gente se desarranjou, fugimos, bem. Ah, e: Córrego Estrelinhas, Córrego da Malhada Grande, Ribeirão Traçadal – tudo foram as feiezas.

Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim ficaram em assento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento passado é glória, é sal em cinza. De tanta maneira Diadorim assistia comigo, como um gravatá se fechou. Semeei minha presença dele, o que da vida é bom eu dele entendia. Tomando o tempo da gente, os soldados remexiam este mundo todo. Milho crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju nos campos. Ato que voltaram as tempestades, mas entre aquelas noites de estrelaria se encostando. Daí, depois, o vento principiou a entortar rumo, mais forte – porque o tempo todo das águas estava no se acabar. Tenente Reis Leme nos escaramuçando: queria correr com a gente a pano de sabre.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Matou-se montanha de bons soldados. Estávamos em terras que entestam com a Bahia. Em Bahia entramos e saímos, cinco vezes, sem render as armas. Isto que digo, sei de cor: brigar no espinho da caatinga pobre, onde o cãcã canta. Chão que queima, branco! E aqueles cristais, pedra-cristal quase de sangue...

Chegamos até no cabo do mundo.

Quadrante o que havia, me esconjuro. Parecia que a gente ia ter de passar o resto da vida guerreando com os praças? Mas nosso constar era outro, com sangue de urgência – aquela luta de morte contra os Judas – e que era briga nossa particular. Não se tendo recurso competente. Ah, Diadorim mascava. Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo. Eu mesmeava. Mas, dando um dia, a gente teve certas notícias: os do Hermógenes estando senhores arranchados, conforme retouçavam, da banda de lá do Rio do Chico: nas vertentes da beira da mão direita do Carinhanha, no Chapadão de Antônio Pereira. Questionou-se nisso. Se pensou e falou em tudo por fazer e não fazer. Resultado foi este: que o principal era a gente mandar reforço, para Medeiro Vaz, uns cinqüenta ou cem homens, repartidos em miúdos grupos, caçando jeito de safança por entre os lugares perigáveis.

Enquanto tanto, João Goanhá, Alípio Mota e Titão Passos, cada qual de lado seu, deviam de ir desmanchar os rastos na caatinga,

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