Saiu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o sol na beira.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por o uso de resguardado território, de uma légua. Me deu certa tristeza. Mas a minha satisfação ainda era maior.
Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram essas grandes abundâncias. Angu e couve, abóbora-moranga cozida, torresmos, e em toda fogueira assavam mantas de carnes. Quem quisesse sopa, era só ir se aquinhoar na porta-da-cozinha. A quantidade de pratos era que faltava. E assaz muita cachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou satisfazer goles a todos – extraordinária de boa. O senhor havia de gostar de ver aquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito como podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos, entalagados. Daí, escureceu. Homens deitados no chão, escornados até quase debaixo do mijo dos cavalos pastantes. Eu estava que impava, queria um bom sono. A ver, fui com Diadorim para o rumo dos pés de fruta, seguindo o rego. Com a entrada da noite, o passar da água canta friinho, permeio, engrossa, e a gente aprecia o cheiro do musguz das árvores. Zé Bebelo tinha ido embora, para sempre, no cavalo de duas cores, fez pouca poeira. Nós estávamos no jaz ali, repimpados, enfunando as redes. Disso não esqueço? Não esqueço. A gente estava desagasalhados na alegria, feito meninos.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Eu tinha vindo para ali, para o sertão do Norte, como todos uma hora vêm. Eu tinha vindo quase sem mesmo notar que vinha – mas presado, precisão de agenciar um resto melhor para a minha vida. Agora me expulsassem? Do jeito, isto é, tinham repelido para trás Zé Bebelo. Não me esqueci daquelas palavras dele: que agora era “o mundo à revelia...” Disse a Diadorim. Mas Diadorim menos me respondeu. Ao dar, que falou: – “Riobaldo, você prezava de ir viver n’Os-Porcos, que lá é bonito sempre – com as estrelas tão reluzidas?...” Dei que sim.
Como ia querer dizer diferente: pois lá n’Os-Porcos não era a terra de Diadorim própria, lugar dele de crescimento? Mas, mesmo enquanto que essas palavras, eu pensasse que Diadorim podia ter me respondido, assim nestas fações: – “... Mundo à revelia? Mas, Riobaldo, desse jeito mesmo é que o mundo sempre esteve...” Toleima, sei, bobéia disso, a basba do basbaque. Que eu dizia e pensava numa coisa, mas Diadorim recruzava com outras – “... Zé Bebelo, Diadorim: que é que você achou daquele homem?” – ainda indaguei. – “Para ele, de agora, não tem dia nem noite: vai seu rumo, fazendo a viagem...
Teve sorte! Entestou foi com Joca Ramiro – com sua alta bondade...” – foi o que Diadorim me respondeu. E ficou pensando, ficamos. Aí quando eu acabei até à pontinha meu
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cigarro, ainda perguntei: – “A ver, quem salvou Zé Bebelo da morte?” Diadorim, o que quis me dizer foi em tanto segredo, que ele puxou a beira da minha rede, para a gente falar quase cara a cara: – “Ah, quem salvou Zé Bebelo de morte? Pois, abaixo de Joca Ramiro, por começar foi ele Zé Bebelo mesmo.
Depois, numa ponta do dito de Zé Bebelo, tomou figura Só Candelário – homem esquipático e enorme de si, mas fiel, e que põe mais de trezentas armas. Cabras que, por um gesto dele, avançam e matam e matam...” Eu queria que ele tivesse explicado o fato de outro jeito. Mas Diadorim estava prosseguindo: –
“... A ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente estarrecida de iras frias... Agora, esses me dão receio, meu medo... Deus não queira...” Depois, ele terminou assim: – “...
Ao enquanto Joca Ramiro pode precisar da gente, você mesmo me prometeu, Riobaldo: a gente persiste por aqui.” Prometi outra vez, confirmei. Desde, no sereno da noite, não se conversou mais, não me recordo.
Diadorim estava triste, na voz. Eu também estive. Por quê? – há-de o senhor querer saber. Por causa de Zé Bebelo ter ido embora; e aquilo era motivo? Depois de Paracatu, é o mundo... Zé Bebelo ido, sei lá bem porque, tirava meu poder de pensar com a idéia em ordem, e eu sentia minha barriga demais
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cheia, demais de tantas comidas e bebidas. Só o que me consolava era ter havido aquele julgamento, com a vida e a fama de Zé Bebelo autorizadas. O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de palavras. – “O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão...” – o senhor dirá. Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não era réu no real! Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juizo! Daquela hora em diante, eu cri em Joca Ramiro. Por causa de Zé Bebelo. Porque, Zé Bebelo, na hora, naquela ocasião, estava sendo maior do que pessoa. Eu gostava dele do jeito que agora gosto de compadre meu Quelemém; gostava por entender no ar. Por isso, o julgamento tinha dado paz à minha idéia – por dizer bem: meu coração. Dormi, adeus disso. Como é que eu ia poder ter pressentimento das coisas terríveis que vieram depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto?
Curtamente: dali da Sempre-Verde, com um dia mais, desapartamos. O bando muito grande de jagunços não tem composição de proveito em ocasião normal, só serve para chamar soldados e dar atrásamento e desrazoada despesa.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Constava que João Goanhá torasse para a Bahia, e que o Antenor seguindo rumo em beira do Ramalhada, com um punhado dos Hermógenes. Novas ordens, muitas ordens. Alaripe ia vir com Titão Passos. Titão Passos chamou a gente: Diadorim e eu. Se tinha um roteiro, sendo para ser: o mais encostado possível no São Francisco, até para lá do Jequitaí, e mais. Aquilo, por quê? A gente não ia junto com Joca Ramiro, em caso de lhe a ele podermos valer, em caso, com maior ajuda, mão a mão? Ah, mas nossa tarefa era de muito encoberto empenho e valor: pelo que tínhamos de estanciar em certos lugares, com o fito de receber remessas; e em acontecer de vigiar algum rompimento de soldados, que para o Norte entrassem. Arreamos, montamos, saímos. Naquela mesma da hora, Joca Ramiro dava partida também, de volta para o São João do Paraíso. Lá ia ele, deveras, em seu cavalão branco, ginete – ladeado por Só Candelário e o Ricardão, igual iguais galopavam. Saíam os chefes todos – assim o desenrolar dos bandos, em caracol, aos gritos de vozear. Ao que reluzia o bem belo. Diadorim olhou, e fez o sinal-da-cruz, cordial. – “Assim, ele me botou a benção...” – foi o que disse. Dá sempre tristezas algumas, um destravo de grande povo se desmanchar. Mas, nesse dia mesmo, em nossos cavalos tão bons, dobramos nove léguas.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas As nove. Com mais dez, até à Lagoa do Amargoso. E sete, para chegar numa cachoeira no Gorutuba. E dez, arranchando entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Mas saímos, saímos. Subimos. Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As muitas águas. Os verdes já estavam se gastando.
Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros. O marrequim, a garrixa-do-brejo, frangos-d’água, gaivotas. O manuelzinho-da-croa! Diadorim, comigo. As garças, elas em asas. O rio des-mazelado, livre rolador. E aí esbarramos parada, para demora, num campo solteiro, em varjaria descoberta, pasto de muito gado.
Lugar perto da Guararavacã do Guaicuí: Tapera Nhã, nome que chamava-se. Ali era bom? Sossegava. Mas, tem horas em que me pergunto: se melhor não seja a gente tivesse de sair nunca do sertão. Ali era bonito, sim senhor. Não se tinha perigos em vista, não se carecia de fazer nada. Nós estávamos em vinte e três homens. Titão Passos determinou uma esquadrazinha deles –
com Alaripe em testa: fossem para a outra banda do morro,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas baixada própria da Guararavacã, esperar o que não acontecesse.
Nós ficamos.
O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era: bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão – que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe – fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi, sestas inteiras, por minha vida. Gavião dava gritos, até o dia muito se esquentar. Aí então aquelas fileiras de reses caminhavam para a beira do rio, enchiam a praia, parados, ou refrescavam dentro d’água. Às vezes chegavam a nado até em cima duma ilha comprida, onde o capim era lindo verdejo. O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas não-saber. E eu não tinha notícia de ninguém, de coisa nenhuma deste mundo – o senhor pode raciocinar. Eu queria uma mulher, qualquer. Tem trechos em que a vida amolece a gente, tanto, que até um referver de mau desejo, no meio da quebreira, serve como beneficio.
Um dia, sem dizer o que a quem, montei a cavalo e saí, a vão, escapado. Arte que eu caçava outra gente, diferente. E
marchei duas léguas. O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi e boi e campo. Eu tocava seguindo por trilhos de vacas. Atravessei um ribeirão verde, com os umbuzeiros e ingazeiros debruçados
– e ali era vau de gado. “Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...” – foi o que pensei, na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de-motivo; que, quando notei que estava com dorde-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. O tanto assim, que até um corguinho que defrontei – um riachim à-toa de branquinho – olhou para mim e me disse: – Não... – e eu tive que obedecer a ele. Era para eu não ir mais para diante. O riachinho me tomava a benção. Apeei. O
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, deitei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, deitado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava.
Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha idéia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei. O
calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender – e acho que é por
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: –
Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... – que era como se Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando. E, digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que foi que, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir dele.