– “Eu cá, ché, eu estou p’lo qu’ o ché pro fim expedir...”
– “Mas não é bem o caso, compadre João. Vocês dão o voto, cada um. Carece de dar...” – foi o que Joca Ramiro explicou mais.
A tanto João Goanhá se levantou, espanou com os dedos no nariz. Daí, pegou e repuxou seu canhão de cada manga.
Arrumou a cintura, com as armas, num propósito de decisão.
Que ouvi um tlim: moveu meus olhos.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Antão pois antão...” – ele referiu forte: – “meu voto é com o compadre Só Candelário, e com meu amigo Titão Passos, cada com cada... Tem crime não. Matar não. Eh, diá!...”
Rezo que ele falou aquilo, aquele capiau peludo, renasceu minha alegria. Rezo que falou, grosso, como se fosse por um destaque de guerra. De ripipe, espiei o Hermógenes: esse preteou de raiva. O Ricardão não acabava de cochilar, cara grande de sapo. O Ricardão, no exatamente, era quem mandava no Hermógenes. Cochilava fingido, eu sabia. E agora? Que é que tinha mais de ter? Não estava tudo por bem em bem terminado?
Ah, não, o senhor mire e veja. Assim Joca Ramiro era homem de nenhuma pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em uma soberania sem manha de arrocho, perpasseou os olhos na roda do povo. Ant’ante disse, alto:
– “Que tenha algum dos meus filhos com necessidade de palavra para defesa ou acusação, que pode depor!”
Tinha? Não tinha. Todo o mundo se olhava, num desconcerto, como quem diz lá: cada um com a cara atrás da sela.
Para falar, ali não estavam. Por isso nem ninguém tinha esperado.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Com tanto, uns fatos extraordinários. Haja veja, que Joca Ramiro repetiu o perguntar:
– “Que por aí, no meio de meus cabras valentes, se terá algum que queira falar por acusação ou para defesa de Zé Bebelo, dar alguma palavra em favor dele? Que pode abrir a boca sem vexame nenhum...”
Artes o advogo – aí é que vi. Alguém quisesse? Duvidei, foi o que foi. Digo ao senhor: estando por ali para mais de uns quinhentos homens, se não minto. Surgiu o silêncio deles todos.
Aquele silêncio, que pior que uma alarida. Mas, por que não davam brados, não falavam todos total, de torna vez, para Zé Bebelo ser botado solto?... me enfezei. Sus, pensei, com um empurrão de força em mim. Ali naquel’horinha – meu senhor –
foi que eu lambi idéia de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente. De sim, sim, pingo.
Acho que eu tinha suor nas beiras da testa. Ou então – eu quis –
ou, então, que se armasse ali mesmo rixa feia: metade do povo para lá, metade para cá, uns punindo pelo bem da justiça, os outros nas voltas da cauda do demo! Mas que faca.e fogo
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas houvesse, e braços de homens, até resultar em montes de mortos e pureza de paz... Sal que eu comi, só.
Abre que, ah, outra vez, Joca Ramiro reproduziu a pergunta: – “Que se tiver algum...” – e isto e aquilo, tudo o mais. Me armei dum repente. Me o meu? Eu agora ia falar – por que era que não falava? Aprumei corpo. Ah, mas não acertei em primeiro: um outro começou. Um Gu, certo papa-abóbora, beiradeiro, tarraco mas da cara comprida; esse discorreu:
– “Com vossas licenças, chefe, cedo minha rasa opinião.
Que é – se vossas ordens forem de se soltar esse Zé Bebelo, isso produz bem... Oséquio feito, que se faz, vem a servir à gente, mais tarde, em alguma necessidade, que o caso for... Não ajunto por mim, observo é pelos chefes, mesmo, com esta vênia. A gente é braço d’armas, para o risco de todo dia, para tudo o miúdo do que vem no ar. Mas, se alguma outra ocasião, depois, que Deus nem consinta, algum chefe nosso cair preso em mão de tenente de meganhas – então também hão de ser tratados com maior compostura, sem sofrer vergonhas e maldades... A guerra fica sendo de bem-criação, bom estatuto...”
Aquilo era razoável. A ver, tinha saído tão fácil, até Joca Ramiro, em passagens, animou o Gu, com acenos. Tomei
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas coragem mais comum. Abri a minha boca. AI, mas, um outro campou ligeiro, tomou a mão para falar: Era um denominado Dosno, ou Dosmo, groteiro de terras do Cateriangongo – entre o Ribeirão Formoso e a Serra Escura – e ele tinha olhos muito incertos e vesgava. Que era que podia guardar para dizer um homem desses, capiau medido por todos os capiaus do meu Norte?
Escutei.
– “Tomém pego licença, sós chefes. Em que pior não veja, destorcendo meu desatino. É-que, é-que... Que eu acho que seja melhor, em antes de se remitir ou de se cumprir esse homem, pois bem: indagar de fazer ele dizer ond’é que estão a fortuna dele, em cobre... A mó que se diz – que ele possederá o bom dinheiro, em quantia, amoitado por aí... É só, por mim, é só, com vosso perdão... Com vosso perdão...”
Riram, uns; por que é que riram? – rissem. Dei como um passo adiante, levantei mão e estalei dedo, feito menino em escola. Comecei a falar. Diadorim ainda experimentou de me reter, decerto assustado: – “Espera, Riobaldo...” – tive o siso da voz dele no ouvido. Aí eu já tinha principiado. O que eu acho, disse, supri neste mais menos fraseado:
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Dê licença, grande chefe nosso, Joca Ramiro, que licença eu peço! O que tenho é uma verdade forte para dizer, que calado não posso ficar...” Digo ao senhor: que eu mesmo notei que estava falando alto demais, mas de me abrandar não tinha prazo nem jeito – eu já tinha começado. Coração bruto batente, por debaixo de tudo. Senti outro fogo no meu rosto, o salteio de que todos a finque me olhavam. Então, eu não aceitei niw guém, o que eu não queria era ver o Hermógenes. Não pôr as capas dos olhos nem a idéia no Hermógenes – que Hermógenes nenhum neste mundo não tivesse, nenhum para mim, nenhum de si! Por isso, prendi minhas vistas só num homem, um que foi o qualquer, sem nem escolha minha, e porque estava bem por minha frente, um pardo. Pobre, esse, notando que recebia tanto olhar, abaixou a cara, amassado de não poder outra coisa. No eu falando:
–... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primei-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ra, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi.
Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... E isto digo, porque de dizer eu tinha, como dever que sei, e cumprindo a licença dada por meu grande chefe nosso, Joca Ramiro, e por meu cabo-chefe Titão Passos!...”
Tirei fôlego de fôlego, latejei. Sei que me desconheci.