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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de remorso, por me temer em consciências? A gente sabe mais, de um homem, é o que

ele esconde. – “Ah: o Urutu Branco: assim é que você devia se chamar... E amigos somos. A ver, um dia, a gente vai entrar, juntos, no triunfal, na forte cidade de Januária...” – aprontado ele falou. Ao que resposta não dei. Amigo? Eu, ali, do lado de Zé Bebelo; mas Zé Bebelo não estava do lado de ninguém. Zé Bebelo – cortador de caminhos. Amigo? Eu era, sim senhor.

Aquele homem me sabia, entendia meu sentimento. A ser: que entendia meu sentimento, mas só até uma parte – não entendia o depoisdo-fim, o confrontante. Assemelhado a ele, pensei. Pensei: eu visse que traindo ele estivesse, ele morria. Morria da mão de um amigo. Jurei, calado. E, desde, naquela hora, a minha idéia se avançou por lá, na grande cidade de Januária, onde eu queria comparecer, mas sem glórias de guerra nenhuma, nem acompanhamentos. Alembrado de que no hotel e nas casas de família, na Januária, se usa toalha pequena de se enxugar os pés; e se conversa bem. Desejei foi conhecer o pessoal sensato, eu no meio, uns em seus pagáveis trabalhos, outros em descanso comedido, o povo morador. A passeata das bonitas moças morenas, tão socialmente, alguma delas com os cabelos mais pretos rebrilhados, cheirando a óleo de umbuzeiro, uma flor

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas airada enfeitando o espírito daqueles cabelos certos. À Januária eu ia, mais Diadorim, ver o vapor chegar com apito, a gente esperando toda no porto. Ali, o tempo, a rapaziada suava, cuidando nos alambiques, como perfeito se faz. Assim essas cachaças – a vinte-e-seis cheirosa – tomando gosto e cor queimada, nas grandes dornas de umburana.

Ao menos, daí desajoelhei e vim para a alpendrada, avistar o que se passava com Diadorim; e eu estipulava meu direito de reverter por onde que eu quisesse, porque meu rifle certeiro era que tinha defendido de tomação o chiqueiro e a tulha, nos assaltos, e então até a Casa. Diadorim guerreava, a seu comprazer, sem deszelar, sem querer ser estorvado. Datado que Deus, que me livrou, livrava também meu amigo de todo comezinho perigo. As raivas, naquela varanda, vinham e caíam, demasiadas, vi. Tiros altos, revoantes: eram os bandos de balas.

Assunto de um homem que estava deitado mal, atravessado, pensei que assim em pouco descanso. – “Vamos levar para a capela...” – Zé Bebelo mandou. Assunto que era o Acrísio, morto no meio; torto. Devia de ter se passado sem tribulação. Agora não caçavam uma vela, para em provisão dele se acender? –

“Quem tem um rosário?” Mas, no sobrevento, o Cavalcânti se exclamou

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “A que estão matando os cavalos!...”

Arre e era. Aí lá cheio o curralão, com a boa animalada nossa, os pobres dos cavalos ali presos, tão sadios todos, que não tinham culpa de nada; e eles, cães aqueles, sem temor de Deus nem justiça de coração, se viravam para judiar e estragar, o rasgável da alma da gente – no vivo dos cavalos, a torto e direito, fazendo fogo! Ânsias, ver aquilo. Alt’-e-baixos – entendendo, sem saber, que era o destapar do demônio – os cavalos desesperaram em roda, sacolejados esgalopeando, uns saltavam erguidos em chaça, as mãos cascantes, se deitando uns nos outros, retombados no enrolar dum rolo, que reboldeou, batendo com uma porção de cabeças no ar, os pescoços, e as crinas sacudidas esticadas, espinhosas: eles eram só umas curvas retorcidas! Consoante o agarre do rincho fino e curtinho, de raiva

– rinchado; e o relincho de medo – curto também, o grave e rouco, como urro de onça, soprado das ventas todas abertas.

Curro que giraram, trompando nas cercas, escouceantes, no esparrame, no desembesto – naquilo tudo a gente viu um não haver de doidas asas. Tiravam poeira de qualquer pedra! Iam caindo, achatavam no chão, abrindo as mãos, só os queixos ou os topetes para cima, numa tremura. Iam caindo, quase todos, e todos; agora, os de tardar no morrer, rinchavam de dor – o que

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas era um gemido alto, roncado, de uns como se estivessem quase falando, de outros zunido estrito nos dentes, ou saído com custo, aquele rincho não respirava, o bicho largando as forças, vinha de apertos, de sufocados.

– “Os mais malditos! Os desgraçados!”

O Fafafa chorava. João Vaqueiro chorava. Como a gente toda tirava lágrimas. Não se podia ter mão naquela malvadez, não havia remédio. À tala, eles, os Hermógenes, matavam conforme queriam, a matança, por arruinar. Atiravam até no gado, alheio, nos bois e vacas, tão mansos, que, desde o começo, tinham querido vir por se proteger mais perto da casa. Onde se via, os animais iam amontoando, mal morridos, os nossos cavalos!

Agora começávamos a tremer. Onde olhar e ouvir a coisa inventada mais triste, e terrível – por no escasso do tempo não caber. A cerca era alta, eles não tiveram fuga. Só um, um cavalão claro, que era o de Mão-de-Lixa e se chamava Safirento. Se aprumou, nas alças, ficou suspenso, cochilasse debruçado na régua – que nem que sendo pesado em balança, um ponto – as nádegas ancas mostrava para cá, grossas carnes; depois tombou para fora, se afundou para lá, nem a gente podia ver como terminava. A pura maldade! A gente jurava vinganças. E, aí, não

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas se divulgava mais cavalo correndo, todos tinham sido distribuídos derrubados!

Aquilo pedia que Deus mesmo viesse, carnal, em seus avessos, os olhos formados. Nós rogávamos as pragas. Ah, mas a fé nem vê a desordem ao redor. Acho que Deus não quer consertar nada a não ser pelo completo contrato: Deus é uma plantação. A gente – e as areias. Aturado o que se pegou a ouvir, eram aqueles assombrados rinchos, de corposo sofrimento, aquele rinchado medonho dos cavalos em meia-morte, que era a espada de aflição: e carecia de alguém ir, para, com pontaria caridosa, em um e um, com a dramada deles acabar, apagar o centro daquela dor. Mas não podíamos! O senhor escutar e saber

– os cavalos em sangue e espuma vermelha, esbarrando uns nos outros, para morrer e não morrer, e o rinchar era um choro alargado, despregado, uma voz deles, que levantava os couros, mesmo uma voz de coisas da gente: os cavalos estavam sofrendo com urgência, eles não entendiam a dor também. Antes estavam perguntando por piedade.

– “Arre, eu vou lá, eu vou lá, livrar da vida os pobrezinhos!...” – foi o que o Fafafa bramou. Mas não deixamos, porque isso consumava loucura. Não dava dois passos no eirado,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e ele morria fuzilamento, em balas se varava, ah. Agarramos segurado o Fafafa. A gente tinha de parar presa dentro de casa, combatendo no possível, enquanto a ruindade enorme acontecia.

O senhor não sabe: rincho de cavalo padecente assim, de repente engrossa e acusa buracões profundos, e às vezes dão ronco quase de porco, ou que desafina, esfregante, traz a dana deles no senhor, as dores, e se pensa que eles viraram outra qualidade de bichos, excomungadamente. O senhor abre a boca, o pêlo da gente se arrupeia de total gastura, o sobregelo. E quando a gente ouve uma porção de animais, se ser, em grande martírio, a menção na idéia é a de que o mundo pode se acabar. Ah, que é que o bicho fez, que é que o bicho paga? Ficamos naquelas solidões. Alembrar que tão bonitos, tão bons, inda ora há pouco esses eram, cavalinhos nossos, sertanejos, e que agora estraçalhados daquela maneira não tinham nosso socorro. Não podíamos! E que era que queriam esses Hermógenes? De certo seria tenção deles deixar aqueles relinchos infelizes em roda da gente, dia-e-noite, noite-e-dia, dia-e-noite, para não se agüentar, no fim de alguma hora, e se entrar no inferno? Senhor então visse Zé Bebelo: ele terrivelmente todo pensava – feito o carro e os bois se desarrancando num atoleiro. Mesmo mestremente ele comandava: – “Apuremos fogo... Abaixado...” –; fogo, daqui,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dali, em ira de compaixão. Adiantava nada. Com pranchas de munição que a gente gastasse, não alcançávamos de valer aos animais, com o curral naquela distância. Atirar de salva, no inimigo amoitado, não rendia. No que se estava, se estava: o despoder da gente. O duro do dia. A pois, então, me subi para fora do real; rezei! Sabe o senhor como rezei? Assim foi: que Deus era fortíssimo exato – mas só na segunda parte; e que eu esperava, esperava, esperava, como até as pedras esperam. “A faz mal, não faz mal, não tem cavalo rinchando nenhum, não são os cavalos todos que estão rinchando – quem está rinchando desgraçado é o Hermógenes, nas peles de dentro, no sombrio do corpo, no arranhar dos órgãos, como um dia vai ser, por meu conforme... Assim, d’hoje-em-diante doravante, sempre temos de ser: ele o Hermógenes, meu de morte – eu militão, ele guerreiro...” Assim o relincho em restos, trescortado. Aqueles cavalos suavam de derradeira dor.

Agarrávamos o Fafafa, segurado, disse ao senhor. Mas, mais de repente, o Marruaz disse: – “A bom, vigia: olha lá...” O

que era. Que eles – quem havia de não crer? – que eles mesmos agora estavam atirando por misericórdia nos cavalos sobreferidos, para a eles dar paz. Ao que estavam. – “As graças a Deus!...” – exclamou Zé Bebelo, alumiado, com um alívio de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas homem bom. – “Ah, é marmo!” – o Alaripe exclamou também.

Mas o Fafafa nem nada não disse, não conseguia: o quanto pôde, se assentou no chão, com as duas mãos apertando os lados da cara, e cheio chorou, feito criança – com todo o nosso respeito, com a valentia ele agora se chorava. Aí, então, se esperou. Durado de um certo tempo, descansamos os rifles, nem um tirozinho não se deu. O intervalo para deixar a eles folga de matarem em definitivo nossos pobres cavalos. Mesmo quando o arraso do último rincho no ar se desfez de vez, a gente ainda se estarrecia quietos, um tempo grande, mais prazo – até que o som e o silêncio, e a lembrança daquele sofrer, pudessem se enralecer embora, para algum longe. Daí, depois, tudo recomeçou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe

– mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte arma.

Deus é um gatilho?

Mas conto menos do que foi: a meio, por em dobro não contar. Assim seja que o senhor uma idéia se faça. Altas misérias nossas. Mesmo eu – que, o senhor já viu, reviro retentiva com espelho cem-dobro de lumes, e tudo, graúdo e miúdo, guardo –

mesmo eu não acerto no descrever o que se passou assim,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas passamos, cercados guerreantes dentro da Casa dos Tucanos, pelas balas dos capangas do Hermógenes, por causa. Vá de retro!

– nanje os dias e as noites não recordo. Digo os seis, e acho que minto; se der por os cinco ou quatro, não minto mais? Só foi um tempo. Só que alargou demora de anos – às vezes achei; ou às vezes também, por diverso sentir, acho que se perpassou, no zuo de um minuto mito: briga de beija-flor. Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a lembrança demuda de valor – se transforma, se compõe, em uma espécie de decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda: que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? O que eu queira. Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isto, já aprendi.

A bobéia? Pois, de mim, isto o que é, o senhor saiba – é lavar ouro. Então, onde é que está a verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?

A ser que aqueles dias e noites se entupiram emendados, num ataranto, servindo para a terrível coisa, só. Aí era um tempo no tempo. A gente povoava um alvo encoberto, confinado. O

senhor sabe o que é se caber estabelecido dessa constante maneira? Se deram não sei os quantos mil tiros: isso nas minhas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas orelhas aumentou – o que azoava sempre e zinia, pipocava, proprial, estralejava. Assentes o reboco e os vedos, as linhas e telhas da antiga casarona alheia, era o que para a gente antepunha defesa. Um pudesse narrar – falo para o senhor crer – que a casa-grande toda ressentia, rangendo queixumes, e em seus escuros paços se esquentava. Ao por mim, hora em que pensei, eles iam acabar arriando tudo, aquela fazenda em quadradão. Não foi.

Não foi, como logo o senhor vai ver. Porque, o que o senhor vai é – ouvir toda a estória contada.

Morreu mais o Berósio. Morreu o Cajueiro. O Moçambicão e Quim Queiroz, para a gente se sortir, traziam as quantidades de balas. Rente Zé Bebelo andava em toda a parte, mandando se atirar economizado e certeiro. – “Ah, oé, meus filhos: não vão desperdiçar. Matem só gente viva!” – ele trestampava – “... É

coragem, e qué’pe-te! que o morto morrido e matado não agride mais...” Aí cada um gritava para os outros valentia de exclamação, para que o medo não houvesse. Aí os judas xingávamos. Para não se ter medo? Ah, para não se ter medo é que se vai à raiva. A sebo! De dor do calor de inchação, aquele meu braço sempre piorava. Alaripe me cedeu, de bondoso, uma vasilha com água fria, carreou para mim; em entremeio de atirar, eu molhava bem um pano, torcia por cima do braço, o gotejado

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