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A Guararavacã do Guaicuí: o senhor tome nota deste nome. Mas, não tem mais, não encontra – de derradeiro, ali se chama é Caixeirópolis; e dizem que lá agora dá febres. Naquele tempo, não dava. Não me alembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás?

Travessia de minha vida. Guararavacã – o senhor veja, o senhor escreva. As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, o mundo quer ficar sem sertão. Caixeirópolis, ouvi dizer. Acho qqe nem coisas assim não acontecem mais. Se um dia acontecer, o mundo se acaba. Guararavacã. O senhor vá escutando.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade.

Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo.

Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora.

Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor? O rancho era na bordada-mata. De tarde, como estava sendo, esfriava um pouco, por pejo de vento – o que vem da Serra do Espinhaço – um vento com todas almas. Arrepio que fuxicava as folhagens ali, e ia, lá adiante longe, na baixada do rio, balançar esfiapado o pendão branco das canabravas. Por lá, nas beiras, cantava era o joão-pobre, pardo, banhador. Me deu saudade de algum buritizal, na ida duma vereda em capim tem-te que verde, termo da chapada.

Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais.

O senhor vê: o remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio põe no colo.

Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Mas, lá na

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda pastava, meu vizinho, cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aos casais, corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campo claro. Mas, nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho, vindo do dentro do mato, de um macuco – sempre solerte. Era mês de macuco ainda passear solitário – macho e fémea desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinha andando, sarandando, macucando: aquilo ele ciscava no chão, feito galinha de casa. Eu ri – “Vigia este, Diadorim!” – eu disse; pensei que Diadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. O macuco me olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quase endireito em mim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou os olhos.

Aquele pássaro procurava o quê? Vinha me pôr quebrantos. Eu podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei. Peguei só num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu um susto, trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a cabeça, cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de costas, fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro para o bom adormecer.

O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente –

“Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim-que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas – de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí, levantei.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que vale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado. – “Hê, Riobaldo, eh, uê, você carece de alguma coisa?” – ele me perguntou, quem-me-vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. “Se é o que é” – eu pensei – “eu estou meio perdido...” Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia

– virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro –

no mato – um tiraço que ribombou. – “Ao que foi?” – me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. – “Acho que um macaquinho miúdo, que acho que errei...” – eu expendi.

Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...” Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?

Segundo digo, o tempo que paramos na Guararavacã do Guaicuí regulou em dois meses. Bom ermo. De lá, a gente cruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Todo dia, trocávamos recado de avisos com o pessoal do Alaripe.

Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio, do que fosse para chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos campos: quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças.

De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas e brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas léguas, tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era amigo nosso. – “Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a gente, bem caros preços que eu pagava...” – assim o que dizia o Paspe, suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas lavrador, montados num cavalo magro, traziam feixes de cana, para vender para a gente. Às vezes, vinham em dois cavalos magros, e eram cinco ou seis meninos, amontados, agarrados uns nos outros, uns mesmo não se sabia como podiam, de tão mindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo o tempo ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. –

“Olha, vigia: o manuelzinho-da-troa já acabou de fazer a muda...” Um dia, em que tínhamos caçado uma paca bem gorda, o Paspe pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas, e deu ao menino mais velho: – “P’ra tu leva de presente, dá à tua mãe, fala que quem mandou fui eu...” – ele recomendou. A gente ria.

Os meninos receavam o gado: ali no meio tinha reses muito bravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém, querendo bater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos os bois se atolavam no embrejado, até morreram alguns. Os urubus espaceavam, quando o céu empoeirado. Pousavam no pindaibal do brejo. João Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar os bois que podia. Uns eram mansos: por um punhado de sal, se chegavam, lambiam o chão nos pés da gente. João Vaqueiro sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma vaca – capins

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tão bons, o senhor crê? – algumas ainda guardavam leite naqueles peitos. – “A gente carecia era de dar um fogo, de sair por aí, por combate...” – sensato se dizia. Que jagunço amolece, quando não padece.

A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte, geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só um de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o Jesualdo.

A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande de sabão de coco de macaúba, para sé lavar corpo. O dono da venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia de explicar à gente, de dia é de noite, como elas eram, formosuramente. – “Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher...” – o Vove disse. – “O que tu não faz! Porque o que eu quero é o exato: que eu vou’ lá, prezado peço em casamento, e nóivo...” –

o Triol contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de sentimento, cantavam pelo nariz.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas eles não sabiam. – “Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas...” – eles desqueriam.

Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo igual – às vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira estiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho castanho; e vinha trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, e que por dinheirinho bom se pagou. – “A vida tem de mudar um dia para melhor” – a gente dizia. Requeijão é com café bem quente que é mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, outras diversas vezes.

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