– 414 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada que saía do mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de vinda, nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não era. Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num pronto ser, se via que estava ancho com muitas plenipotências. O que era?
O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele gaguejou ar e demorou – decerto porque a notícia era urgente ou enorme. – “Ar’uê, então?!” – Titão Passos quis. – “Te rogaram alguma praga?” O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. À fé, quase gritou:
– “Mataram Joca Ramiro!...”
Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de Diadorim : todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens.
Se gritava – o araral. As vertentes verdes do pindaibal avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou as ordens.
Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro.
– 415 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo.
Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava.
– “Repete, Gavião!”
– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...” –
“Quem? Adonde? Conta!”
Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços.
Secou todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até atravessado, na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço que outros
– 416 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.
– “... Matou foi o Hermógenes...”
– “Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demônio!
Traição! Que me paga!...” – constante não havendo quem não exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade.
Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo – e a tristeza em cru – sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.
– “... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O
Antenor... Muitos...
– “Mas, adonde onde!?”
– “A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, beira da Jerara – lá onde o córrego da Jerara desce do morro do Vôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi sido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda.
Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí,
– 417 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mortos: João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o Cambó, Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até se deu um tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do Ricardão era demais numeroso... Dos bons, quem pôde, fugiram corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte e tantos companheiros...”
Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele agarrou o Gavião-Cujo pelos braços:
– “Hem, diá! Mas quem é que está pronto em armas, para rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente na vingança agora, nas desafrontas? Se tem, e ond’é então que estão?!”
– “Ah, sim, chefe. Os todos os outros: João Goanhá, Só Candelário, Clorindo Campelo.,. João Goanhá pára com porçanheira de homens, na Serra dos Quatis. Aí foi ele quem me mandou trazer este aviso... Só Candelário ainda está para o Norte, mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertos da Lagoa-do-Boi, em juramento... Já foi portador para lá. Sendo que se despachou um positivo também para dar parte a Medeiro Vaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que o sertão pega em armas, mas Deus é grande!”
– 418 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Louvado. Ah, então: graças a Deus! Ao que, então, está bem...” – Titão Passos se cerrou.
E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados.
Aquilo dava um sutil enorme.
– “Teremos de ir... Teremos de ir...” – falou Titão Passos, e todos responderam reluzentemente. Tínhamos de tocar, sem atraso, para a Serra dos Quatis, a um lugar dito o Amoipira, que é perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava mais, as miúcias – parecia que tinha medo de esbarrar de contar.
Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem sofrer. – “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou, numa voz de mais dor, como saía ansiada. Que não sabia-o Gavião-Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto empa-lidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. – “Um homem de
– 419 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...” – ele me disse, dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova.