João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso.
Mudei para adiante! Perdi – isto é – por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunços do Norte são civilizados de calibre: que não matam com o distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei.
Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...”
Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo:
– “... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos.
Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que fiz, valeu por bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: não devia-de. Isto é: depende da sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia...
Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para quê? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço.
Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso me oferecer de servir debaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto era honra, mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe. Chefes.”
Digo ao senhor, foi um momento movimentado.
Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou, repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco descabelado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um homem.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Olhei, olhei. Só a gente mal ouvisse o sussurro de todos lá; que foi bom: conheci que era. – “O sujeito machacá! Assopres!” –
“Arre, maluco é – mas frege... Capaz que castra garrote com as unhas dos dedos...” Não o que Diadorim não disse – mas ele estava assim por pálido. Vai, vi os chefes. Eles conversaram um circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão – e Joca Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e o Hermógenes – eles dois eram chouriço e morcela. Só Candelário-conforme seus conformes, avançante-Joca Ramirosorriu para Só Candelário. O jeito de João Goanhá – richarte. Só Titão Passos espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão bom, tão sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga – só esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro ia decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar, para um dizer em orelha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num gesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé Bebelo. O quando falou:
– “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: –
“Reconheço. Reconheço! Reconheço...” – estreques estalos de gatilho e pinguelo – o que se diz: essas detonações.
– “Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?”
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois:
– “A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo correto, como compertence.”
– “A falando?”
– “Que: se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...”
Ao que Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.”
– “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-de-sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer para os três dias, legal...”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo. Topo!”
– “... Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?”
– “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...”
– Joca Ramiro ai disse, em final. E se levantou, num de repente.
Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia – as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria: todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome.
Diadorim me chamou, fomos caminhando, no meio da queleléia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes: ele se amargou, engolindo de boca fechada. – “Diadorim” – eu disse – “esse Hermógenes está em verde, nas portas da inveja...” Mas Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou dizendo: – “Deus é servido...” Não sosseguei. Aquele pessoal tribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha: panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a valer. Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nada não, mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos a lembrança do Hermógenes, na hora do julgamento. De como primeiro ele, soturno, não se sobressaía, só escancarava muito as pernas, facãozão na mão; mas depois ficou artimanhado, com uma tristeza fechada aos cantos, como cão que consome raivas.
E o Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas, quando esbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolando que nem apostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudo estava passado, terminado. Estava? Pois, pedi espera a Diadorim, na beira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse, desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu cacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele.
Virando que eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: –
... “Mamãezada...” Ao que seria? O Hermógenes não era nenhum toleimado, para desfazer na decisão de Joca Ramiro.
“Mamãezada”?Mais não ouvi, relembro que não sei direito. Com pouco, Zé Bebelo estava dando as despedidas. Se viu, montado num bom cavalo de duas cores, arreado com sela boa de Minas-Velhas. Deram que levasse carabina, suas outras armas, e cruzcruz cartucheiras. Aí já tinha jantado. E o bornal com matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou na sela. Se foi.