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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas frescor de alívio. Um companheiro sempre me ajudando, conforme agradeci. Um urucuiano, daqueles cinco urucuianos de Zé Bebelo. Isso, no instante, estranhei. Notei, de repente: aquele homem, fazia tempo que não se arredava de mim, sempre me seguindo, por perto.

Solevei uma desconfiança. Sempre o vulto presente daquele homem; seria só por acasos? O urucuiano, deles, que o Salústio se chamava. O que tinha os olhos miudinhos em cara redonda, boca mole e sete fios de barba compridos no queixo. Arreliado falei: – “Que que é? Tu amigou comigo?! Tatu – tua casa...” –

para ele. Semi-sério ele se riu. Comparsa urucuiano dos olhos verdes, homem muito feioso. Ainda nada não disse, coçou a barriga com as costas dobradas da mão – gesto de urucuiano. Eu bati com a minha mão direita por cima da canhota, que pegava o rifle, e deixei deixada – gesto de jagunço. Apertei com ele: – “Ao que me quer?” Me deu resposta: – “Ao assistir o senhor, sua bizarrice... O senhor é atirador! É no junto do que sabe bem, que a gente aprende o melhor...” A verdade com que ele me louvava.

Se riu, muito sincero. Não desgostei da companhia dele, para os bastantes silêncios. Assim é o que digo: que, quando o tiroteio batia forte, de lá, e daí de repente estiava – aquilo servia um pesado, salteação. Surdo pensei: aqueles Hermógenes eram gente

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas em tal como nós, até pouquinho tempo reunidos companheiros, se diz – irmãos; e agora se atravavam, naquela vontade de desigualar. Mas, por quê? Então o mundo era muita doideira e pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita. Pois o urucuiano Salústio João mais olhei. Ali, ajoelhado, ele mirava e atirava. Atirava e fechava os olhos. Quando abria outra vez, queria ver alguém vivo?

Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas idéias. O

pensar assim produzia mal – já era invocar o receio. Porque, então, eu sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho.

Agora, por me valer, eu tinha de me ser como os outros, a força unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira. Do Hermógenes e do Ricardão? Neles eu nem pensava. Antes pensei outra vez foi no embuste do urucuiano. Atual ele se ajoelhava dobroso, com a perna muito para trás, a outra muito para diante. Aquele homem – achei –

estava mandado por Zé Bebelo, para espreitar meus atos.

A prova que era: de que Zé Bebelo despachava traição. As espumas dele me espirravam. Será que fosse para o urucuiano Salústio no primeiro descuido meu me amortizar? Tanto, não; apostei. Zé Bebelo me queria vigiado, para eu não contar aos

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas outros a verdade. Ora bem, que uns companheiros tinham avistado os bilhetes eu escrever – o fato esquisito, assim, em hora de começo de fogo; mas por certo pensavam que era para fazendeiros amigos nossos, chefes de homens, rogando que viessem, com retaguarda e reforço. Agora, Zé Bebelo temia que eu candongasse. Aí mandou o urucuiano fazer a minha sombra. Mas Zé Bebelo carecia de mim, enquanto o cerco de combate desse de durar. Traidor mesmo traidor, e eu também não precisava dele

– da cabeça de pensar exato? Ao que, naquele tempo, eu não sabia pensar com poder. Aprendendo eu estava? Não sabia pensar com poder – por isso matava. Eu aqui – os de lá do lado de lá. A anhanga que em riba da gente despejavam, balaços de tantos rifles, balas que quebram tetos e portas. Ah, isso era desgraça sem mão mandante, ofensa sem nenhum fazedor –

quase feito uma chuva-de-pedra, acontecer de trovões e raios, tempestade – parecesse? Eu ia ter raiva dos homens que não enxergava? Podia ter? Tinha, toda, era dos que eu matava bem.

Mas nem bem não era mesmo raiva; era só confirmação.

Desse jeito foi que entardeceu, o sol piscou; a gente tendo perdido a certeza dos horários do dia. Afã de dessossego, era só.

Daí, pegava um cansaço. Fechasse a noite, o perigo podia vir a ser maior. Os Hermógenes não iam investir, mediante trevas,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para um fim ali dentro, de coronha e faca? Morreu mais o Quiabo. Outros atestavam uns ferimentos. Por se necessitar da capela, os defuntos a gente foi levando para um cômodo pequeno e sem janela, que era pegado na escadinha do corredor.

Alaripe apareceu com uma vela, acendeu, enfiada numa garrafa.

Vela sozinha, para eles todos. Aí as lamparinas e candeias não bastavam? Debaixo dum alumiar de candeia, Zé Bebelo estava me convidando. Arte que logo entendi. Ele tinha mandado vir Joaquim Beiju e o Quipes, para um segredado.

Agora, aqueles dois, era para surtirem, saindo rastejando, conforme o quiçá; e cada um levava seu punhado de bilhetes, enviados. Por uma banda um, o outro da outra: o que Deus aprovasse, chegava. Assim eles aceitaram de cumprir, e motivos não perguntaram. Tudo em encoberto. Então – se Zé Bebelo guardava uma tenção honesta – por que, dito e feito, era que não punha todo o mundo ciente do tramado? Ainda esperei. Mas –

dirá o senhor – por que era que eu também não delatava aquilo, os efeitos e projetos, ao menos a Diadorim e Alaripe eu não contava? Deponho que não sei. Aos perigos, os perigos. Só duma coisa eu forte sabia... Só que eu ia vigiar sempre Zé Bebelo. Ele trair, vivo, eu não deixava. Zé Bebelo tinha sua espécie de natureza – que servia ou atraiçoava? Ah, depois eu ia ver.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, eu ia ver se, no engasgo da hora, ele ia querer se estrapafar.

Joaquim Beiju e o Quipes ainda foram na cozinha, cortar um de-comer, arranjar matula. Por essa volta, o jacaré mesmo combatia também, às vezes em que não estava cozinhando, e vinha atirar, da beira duma janela, com o Mijafogo. A noite breava própria; o mais escuro ia ser regulando em antes das dez horas, que quando depois podia subir um caco de lua. Aos poucos, foi dando um tão respeitável silêncio, não se atirava de parte nem de outra, a gente mesma ficava na cautela de não se fabricar rumor nenhum, de não se pautear sem necessidade. De noite, o clarão das pólvoras marca denúncia do lugar do atirador.

– “Noite é p’ra surpresas de estratagemas, noite é de bicho no usável...” – o Alaripe baixo falou. O cearense bom: esse permanecia em tudo igual, com ele a gente desproduzia qualquer remorso, o brigar parava sendo obrigação de vivente, conciso dever de homem. Por uns assim, eu punia. Por uns, assim, eu devia de ser inteiro leal, eu mesmo. Mas, então, eu carecia de encostar Zé Bebelo, o espremer na franca fala. A que ele soubesse de minha lei: a que ele sem um aviso não se desgraçasse. Mesmo por causa da gente – porque Zé Bebelo era a perdição, mas também só ele podia ser a salvação nossa. Então,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com ele eu ia falar, o quieto desafio. Adiantava? Aí não adiantasse. Mas, então, eu carecia de armar um poder, carecia de subir para cima daquele homem. Eu tinha de encher de medo as algibeiras de Zé Bebelo. Só isso era o que valia.

Contra o quanto, ele lavorava em firmes, pelo mais pensável, não descumpria de praxe nenhuma. Determinou o pessoal, para sono e sentinela, revezados. Onde perto de cada um dormindo, um parava acordado. Outros rondavam. Zé Bebelo, mesmo, ele não dormia? Sendo esse o segredo dele. Dava o ar de querer saber o mundo universo, administrava. Ao quase, que. A água para a serventia da casa vinha num rego, que beirava a cozinha, encostado, no lateral, descia e passava ainda por baixo da coberta. A gente podia encher as latas, sem arrisco. – “O que eles hão-de, é de demover o rego, lá em riba, botar fácil a gente a seco...” – Zé Bebelo ponderou. Mandou reservar quantia repleta: as vasilhas achadas e procuradas. Fizemos. Mas, de destorcerem o veio do rego, nunca que sucedeu aquilo. Até o derradeiro final, correu água bastante, todo o tempo, fresca abarulhava. Ao se fossem também empeçonhar o de beber? Toleima. Aonde iam ter sortimento de veneno, para águas correntes corromper?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Deus escritura só os livros-mestres. Na noite Zé Bebelo saiu, engatinhando por mais escuro, e revestido com as roupas bem pretas que arranjou, dum e doutro. Ele devia de ter ido até longe, como rato em beira de paiol – que coruja come. Queria era farejar com os olhos o reprofundo. Voltou, aí deu ordem de outra coisa: que todos aproveitassem o sem-lua para suas necessidades boçais, aquelas tapadas estâncias. A gente ia, num vão de buracos, da banda das senzalas. Assim Zé Bebelo instruiu; e se virou para mim. – “Inimigo que faz igual numeração, ou menor do que a nossa.

Por via disso é que não tomam coragem de dar assalto, e é também que eles não conhecem o interior desta boa casa...”

Falou o tanto, comigo. Por que era que ele me escolhia, para os sussurros segredar? Me achava comparsa? – “... Os beócios, sem idéias... Não chegam a ser contrários para mim!” – ele muxoxou, até desapontado. A modo que eu, em Zé Bebelo, quase que tinha perdido toda minha fiança. A amizade dele eu para longe de mim já encostava – porquanto que, por mão minha, no incerto, ele podia ainda vir a precisar de ser matado. Eu estava em claro. Eu tinha preenchido aqueles bilhetes e cartas, amanuense, os linguados de papel – eu compartia as culpas. A invencionice de ambicioneiro. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem comigo, porque tu é

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ponteiro bom, fica de estado-maior meu...” – ele avolumou. Me inteirei. Ali, era a vez.

Ali era a alçada para eu fazer e falar o que já disse, que eu estava com essa razão na cabeça. Se tanto, pensei: “É a minha viveza...” Pelo que repontei:

– “É. Eu vou, com o senhor, e o urucuiano Salústio vem comigo. Vou com o senhor, e esse urucuiano Salústio vem comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou junto perto, para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que será vai ser ou vai não ser...” – alastrei, no mau falar, no gaguejável. Senhor sabe por quê? Só porque ele me mirou, ainda mais mor, arrepentinamente, e eu a meio me estarreci – apeado, goro. Apatetado? Nem não sei. Tive medo não. Só que abaixaram meus excessos de coragem, só como um fogo se sopita. Todo fiquei outra vez normal demais; o que eu não queria. Tive medo não. Tive moleza, melindre. Agüentei não falar adiante.

Zé Bebelo luziu, ele foi de rajada:

– “Ao silêncio, Riobaldo Tatarana! Eh, eu sou o Chefe!?...”

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Saiba o senhor – lá como se diz – no vertiginosamente: avistei meus perigos. Avistei, como os olhos fechei, desvislumbrado. Aí como as pernas queriam estremecer para amolecer. Aí eu não me formava pessoa para enfrentar a chefia de Zé Bebelo?

Agora, pois. Mas agora não tinha outro jeito. Ah? Mas, aí, nem sei, eu não estava mais aceitando os olhos de Zé Bebelo me olhar. “No mundo não tem Zé Bebelo nenhum... Existiu, mas não existe... Nem nunca existiu... Tem esse chefe nenhum... Tem criatura nem visagem nenhuma com essa parecença presente nem com esse nome...” – eu estabeleci, em mansas idéias. Aceitei os olhos dele não, agarrei de olhar só para um lugarzinho, naquele peito, pinta de lugar, titiquinha de lugar – aonde se podia cravar certeira bala de arma, na veia grossa do coração... Imaginar isso, no curto. Nada mais nada. Tive medo não. Só aquele lugarzinho mortal. Teso olhei, tão docemente. Sentei em cima de um morro de grandes calmas? Eu estava estando. Até, quando minha tosse ouvi; depois ouvi minha voz, que falando a dável resposta:

– “Pois é, Chefe. E eu sou nada, não sou nada, não sou nada... Não sou mesmo nada, nadinha de nada, de nada... Sou a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas coisinha nenhuma, o senhor sabe? Sou o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. O senhor sabe? De nada. De nada... De nada...”

Ao dito, falei; por quê? Mas Zé Bebelo me ouviu, inteiramente. As surpresas. Ele expôs uma desconfiança perturbada. Esticou o beiço. Bateu três vezes com a cabeça. Ele não tinha medo? Tinha as inquietações. Sei disso, soube, logo.

Assim eu tinha acertado. Zé Bebelo então se riu, modo generoso.

Adiantava? Ainda falou: – “Ah, qual, Tatarana. Tu vale o melhor.

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