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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nojo. De mim, ou dele? As prisões que estão re-fincadas no vago, na gente. Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho: e via, o reparado – como ele principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, brancamente. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino. Como se eu estivesse calçando par de chinelo muito flote; e eu queria um sinapismo, botim reiúno, duro, redomão.

Agora – e os outros? – o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas, homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo.

– “É essa natureza da gente...” – ele disse; eu não tinha perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de alívio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz?

– 445 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados. O senhor me entende?

De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por quê? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa mulher achada: Nhorinhá, a minha moça Rosa’uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito neblina noruega movente no frio de agosto.

A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei.

Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor.

Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do romper das horas d’alva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas esverdeado. Zé Bebelo podia pautear explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os Hermógenes e dar neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda.

Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti –

tetéia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci

– aquele Siruiz – eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:

Trouxe tanto este dinheiro

o quanto, no meu surrão,

p’ra comprar o fim do mundo

no meio do Chapadão.

Urucuia – rio bravo

cantando à minha feição:

é o dizer das claras águas

que turvam na perdição.

Vida é sorte perigosa

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredaspassada na obrigação:

toda noite é rio-abaixo,

todo dia é escuridão...

Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.

O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava.

Ao clarear do dia.

Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se agüentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo-que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de carne e osso, e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sesfredo porfiava, assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; Joaquim Beiju, rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente; o Tipote, que achava os lugares d’água, feito boi geralista ou buriti em broto de semente; o Suzarte, outro rastreador, feito cão cachorro ensinado, boa pessoa; o Queque, que sempre tinha saudade de sua rocinha antiga, desejo dele era tornar a ter um pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo, faquista, perigoso nos repentes quando bebia um tanto de mais; o Acauã, um roxo esquipático, só de se olhar para ele se via o vulto da guerra; o Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom cacete, que nas mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-mogolense, contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; o Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal; José Gervásio, caçador muito bom; José ]itirana, filho dum lugar que se chamava a Capelinha-do-Chumbo: esse sempre dizia que eu era muito parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto Mangaba, da Cachoeira-do-Choro, dizia-se que entendia de toda mandraca; João Vaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o Coscorão, que tinha sido carreiro de muito ofício, mas constante que era canhoto; o jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, competente sujeito, só que muito soberbose ofendia com qualquer brincadeira ou palavra; o Feliciano, caolho; o Marruaz, homem desmarcado de forçoso: capaz de segurar as duas pernas dum poldro; Guima, que ganhava em todo jogo de baralho, era do sertão do Abaeté; Jiribibe, quase menino, filho de todos no afetual paternal; o Moçambicão – um negro enorme, pai e mãe dele tinham sido escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato – a ele fiquei devendo, sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito mil-réis; o Jequitinhão, antigo capataz arrieiro, que só se dizia por ditados; o Nélson, que me pedia para escrever carta, para ele mandar para a mãe, em não sei onde moradora; Dimas Doido, que doido mesmo não era, só valente e esquentado; o Sidurino,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tudo o que ele falava divertia a gente; Pacamã-de-Presas, que queria qualquer dia ir cumprir promessa, de acender velas e ajoelhar adiante, no São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, caolho também, com movimentos desencontrados, dizia que nunca tinha conhecido mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando a suor de cavalo, se deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a cara dele; Jõe Bexiguento, sobrenomeado “Alparcatas”, deste qual o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. E –

que ia me esquecendo – Raimundo Lê, puçanguara, entendido de curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitolô, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, Pedro Afonso, Zé Vital, João Bugre, Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, Nestor. E Diodolfo, o Duzentos, João Vereda, Felisberto, o Testa-em-Pé, Remigildo, o Jósio, Domingos Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, Simião, Zé Geralista, o Trigoso, o Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, Durval Foguista, Chico Vosso, Acrísio e o Tus caninho Caramé.

Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E

bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra.

A verdade que com Diadorim eu ia, ambos e todos. Além de que Zé Bebelo comandava. – “Ao que vamos, vamos, meu filho, Professor: arrumar esses bodes na barranca do rio, e impor ao Hermógenes o combate...” – Zé Bebelo preluzia, comedindo pompa com sua grande cabeça. Assim de loguinho não aprovei, então ele imaginou que eu estava descrendo. – “Agora coage tua cisma, que eu estou senhor dos meus projetos. Tudo já pensei e repensei, guardo dentro daqui o resumo bem traçado!” – e ele pontoava com dedo na testa. Acreditar eu acreditasse, não duvidei. O que eu podia não saber era se eu mesmo estava em ocasiões de boa-sorte.

A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz, na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele.

Atual, todos prestaram em mim amizade de atenção, aquilo vinha a ser até um consolo. Só que, depois de dois dias, o braço me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas doía inteiro e inchava, sei que a inchação me cansasse muito, sempre eu queria esbarrar pra água beber. – “Se eu tiver de atirar, então como é que faço? Não posso...” – era outro meu receio.

Admirei, porque o José Félix também tinha tido ferimento, na coxa e na perna, mas a natureza dele era limpa, o ofendido secava por si, nem parecendo ser. Assim a primeira vez que me sucedia um a-mal, isso me perturbasse. O que me sofria até nas margens do peito, e nos dedos da mão, não me concedendo movimentos.

Muito temi por meu corpo. “Ah, minha Otacília” – eu gemi em mim. – “Pode que nunca mais você me veja, e então nem viúva minha você não vai ser...” Uns recomendavam arnica-do-campo, outros aconselhavam emplastro de bálsamo, com isso rente se sarava. Aí Raimundo Lê garantiu cura com erva-boa. Mas onde era que erva-boa se ia achar?

À Fazenda dos Tucanos chegamos, lá esbarramos – é na beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxu. Visitamos o fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico longe não se estava. Assim então por que era que não se avançar logo, às duras marchas, para atacar? – “Sei de mim, sei...” – Zé Bebelo menos disse, sem explicação. Desconheci. Cacei um catre, cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa nenhuma não me importei. – “Retém as forças, Riobaldo. Vou campear o

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