João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mesmo ausente. Esbarramos no eirado, liso, grande, de tanto tamanho. Aí tinham apeado Zé Bebelo do cavalo, ele estava com as mão amarradas, sim, mas adiante do corpo, feito algemas. –
“Ata amarra os pés também!” – algum enfezado gritou. Outro se chegou, com uma boa peia, de couro de capivara. Que era que aquela gente pensavam? Que era que queriam? Doideira de todos. Daí, Joca Ramiro, Só Candelário, o Hermógenes, o Ricardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no meio do eirado, numa confa. Mas Zé Bebelo não estava aperreado. Tomou corpo, num alteamento – feito quando o peru estufa e estoura – e caminhou, em direitura. Que que pequeno, era bom: homem às graças. Caminhou, mesmo. – “Oxente!” Para diante de Joca Ramiro, no meio do eirado, tinham trazido um mocho, deixado botado lá; era um tamborete de tripés, o assento de couro. Zé Bebelo, ligeiro, nele se sentou. – “Oxente!” – se dizia. A jagunçama veio avançando, feito um rodear de gado –
fecharam tudo, só deixando aquele centro, com Zé Bebelo sentado simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão em pé, Só Candelário em pé, o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos, todos! Aquilo, sim, que sendo um atrevimento; caso não, o que, maluqueira só. Só ele sentado, no mocho, no meio de tudo. Ao que, cruzou as pernas. E:
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– “Se abanquem... Se abanquem, senhores! Não se vexem...” – ainda falou, de papeata, com vênias e acionados, e aqueles gestos de cotovelo, querendo mostrar o chão em roda, o dele.
Arte em esturdice, nunca vista. O que vendo, os outros se franziram, faiscando. Acho que iam matar, não podiam ser assim desfeiteados, não iam aturar aquela zombaria. Foi um silêncio, todo. Mandaram a gente abrir muito mais a roda, para o espaço ficar sendo todo maior. Se fez.
Mas, de repente, Joca Ramiro, astuto natural, aceitou o louco oferecimento de se abancar: risonho ligeiro se sentou, no chão, defronte de Zé Bebelo. Os dois mesmos se olharam.
Aquilo tudo tinha sido tão depressa, e correu por todos um arruído entusiasmado, dando aprovação. Ah, Joca Ramiro para tudo tinha resposta: Joca Ramiro era lorde, homem acreditado pelo seu valor.
A modo que – Zé Bebelo – sabe o senhor então o que ele fez? Se levantou, jogou para um lado o tamborete, com pontapé, e a esforço se sentou no chão também, diante de Joca Ramiro.
Foi aquele falatório geral, contente. De coisas de tarasco, assim, a gente não gostava? E até os outros chefes, todos, um por um,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mudaram de jeito: não se sentaram também, mas foram ficando moleados ou agachados, por nivelar e não diferir. Ao que o povaréu jagunço, com ansiedade de ver e ouvir o que se desse, se espremendo em volta, sem remangar das armas. Aquele povo –
rio que se enche com intervalo dos estremecimentos, regular, como o piscar de olho dum papagaio. Vigiei o Hermógenes. Eu sabia: dele havia de vir o pior. Com o que, todo o mundo parado, formaram uns silêncios. Menos no mais, Joca Ramiro ia falar as palavras consagradas?
– “O senhor pediu julgamento...” – ele perguntou, com voz cheia, em beleza de calma.
– “Toda hora eu estou em julgamento.”
Assim Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido? Mas ele não estava lorpa nem desfeliz, bom para a forca. Que até capivara se senta é para pensar – não é para se entristecer. E rodou aprumada a cara, vistoriando as caras de tantos homens. Ar que inchou o peito e o queixo levantou, valendo se valendo. Criatura assim sente tudo adivinhado, de relâmpago, na ponta dos olhos da gente. Eu tinha confiança nele.
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– “Lhe aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez.
Perdeu a guerra, está prisioneiro nosso...” – Joca Ramiro fraseou.
– “Com efeito! Se era para isso, então, para que tanto requifife?” – Zé Bebelo repostou, com toda a ligeireza.
De ouvir, dividi o riso do siso. A pois! Ele mesmo tinha inventado exigido esse julgamento, e agora torcia o motivo: como se em fim de um julgamento ninguém competisse de ser fuzilado... Saranga ele não era. Mas estava brincando com a morte, que para cada hora livrava. Ao que bastava Joca Ramiro perder um ponto da paciência, um pouco. Só que, por sorte, paciência Joca Ramiro nunca perdia; motejou, não mais:
– “Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para cima – me disseram. Mas, de repente, chegou neste sertão, viu tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto. Sabença aprendida não adiantou para nada... Serviu algum?”
– “Sempre serve, chefe: perdi – conheço que perdi. Vocês ganharam. Sabem lá? Que foi que tiveram de ganho?”
O puro lorotal. E atrevimento, muito. Os jagunços em roda não entendiam o escutado; e uns indicavam por gestos que Zé Bebelo estava gira da idéia, outros quadrando um calado de mau
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sinal. Até o que disse: – “De lá não sai barca!” Assim se diz. Joca Ramiro não reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí:
– “O senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu costume velho de lei...”
– “Velho é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi novo...”
– “O senhor não é do sertão. Não é da terra...”
– “Sou do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca – que galinha come e cata: esgaravata!”
Que visse o senhor os homens: o prospeito. Aqueles muitos homens, completamente, os de cá e os de lá, cercando o oco em raia da roda, com as coronhas no chão, e as tantas caras, como sacudiam as cabeças, com os chapéus rebuçantes. Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha.
Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito proveitoso: – “Meus meninos... Meus filhos...” Agora, advai que aquietavam, no estatuto. Nanja, o senhor, nessa sossegação, que se fie! O que fosse, eles podiam referver em imediatidade, o banguelê, num zunir: que vespassem.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Estavam escutando sem entender, estavam ouvindo missa. Um, por si, de nada não sabia; mas a montoeira deles, exata, soubesse tudo. Estudei foi os chefes.
Naquela hora, o senhor reparasse, que é que notava? Nada, mesmo. O senhor mal conhece esta gente sertaneja. Em tudo, eles gostam de alguma demora. Por mim, vi: assim serenados assim, os cabras estavam desejando querendo o sério divertimento. Mas, os chefes cabecilhas, esses, ao que menos: expunham um certo se aborrecer, segundo seja? Cada um conspirava suas idéias a respeito do prosseguir, e cumpriam seus manejos no geral, esses com suas responsabilidades. Uns descombinavam dos outros, no sutil. Eles pensavam. Conforme vi. Só Candelário duma banda de Joca Ramiro, com Titão Passos e João Goanhá; o Ricardão da outra, com o Hermógenes. Atual Zé Bebelo foi começando a conversar comprido, na taramelagem como de seu gosto – aí o Ricardão armou um bocejo; e Titão Passos se desacocorou, com a mão num ombro, que devia de ter algum machucado. O Hermógenes fez beiço. João Goanhá, aquele ar sonsado, quase de tolo, no grosso do semblante. O
Hermógenes botava pontas de olhar, some escuro, nuns visos. Só Candelário, ficado em pé, sacudia o moroso das pernas.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Joca Ramiro deve de ter percebido aquele repiquete. Porque ele sobre se virou, para Só Candelário, ao de indagar: