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Sertão: é dentro da gente. O senhor me acusa? Defini o alvará do Hermógenes, referi minha má cedência. Mas minha padroeira é a Virgem, por orvalho. Minha vida teve meio-do-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas caminho? Os morcegos não escolheram de ser tão feios tão frios

– bastou só que tivessem escolhido de esvoaçar na sombra da noite e chupar sangue. Deus nunca desmente. O diabo é sem parar. Saí, vim, destes meus Gerais; voltei com Diadorim. Não voltei? Travessias... Diadorim, os rios verdes. A lua, o luar: vejo esses vaqueiros que viajam a boiada, mediante o madrugar, com lua no céu, dia depois de dia. Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo azul, e não se aparta de sua água – carece de espelho. Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma vez?

Eu queria formar uma cidade da religião. Lá, nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia. O meu Urucuia vem, claro, entre escuros. Vem cair no São Francisco, rio capital. O São Francisco partiu minha vida em duas partes. A Bigri, minha mãe, fez uma promessa; meu padrinho Selorico Mendes tivesse de ir comprar arroz, nalgum lugar, por morte de minha mãe?

Medeiro Vaz reinou, depois de queimar sua casa-de-fazenda.

Medeiro Vaz morreu em pedra, como o touro sozinho berra feio; conforme já comparei, uma vez: touro preto todo urrando no meio da tempestade. Zé Bebelo me alumiou. Zé Bebelo ia e voltava, como um vivo demais de fogo e vento, zás de raio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas veloz como o pensamento da idéia – mas a água e o chão não queriam saber dele. Compadre meu Quelemém outrotanto é homem sem parentes, provindo de distante terra – da Serra do Urubu do Indaiá. Assim era Joca Ramiro, tão diverso e reinante, que, mesmo em quando ainda parava vivo, era como se já estivesse constando de falecido. Só Candelário? Só Candelário se desesperou por forma. Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar. Ao que Joca Ramiro pousou que se desfez, enterrado lá no meio dos carnaubais, em chão arenoso salgado. Só Candelário não era, de certo modo, parente do compadre meu Quelemém, o senhor sabe? Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava. Sonhei mal? E em Otacília eu sempre muito pensei; tanto que eu via as baronesas amarasmeando no rio em vidro – jericó, e os lírios todos, os lírios-do-brejo – copos-de-leite, lágrimas-demoça, são-josés. Mas, Otacília, era como se para mim ela estivesse no ca-marim do Santíssimo. A Nhorinhá – nas Aroeirinhas – filha de Ana Duzuza. Ah, não era rejeitã... Ela quis me salvar? De dentro das águas mais clareadas, aí tem um sapo roncador. Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela. E

ela rebrilhava, para mim, feito itamotinga. Uns talismãs. A mocinha Miosótis? Não. A Rosa’uarda. Me alembrei dela; todas

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas as minhas lembranças eu queria comigo. Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão. Voltam, como os cavalos: os cavaleiros na madrugada – como os cavalos se arraçoam. O senhor se alembra da canção de Siruiz? Ao que aquelas troas de areia e as ilhas do rio, que a gente avista e vai guardando para trás. Diadorim vivia só um sentimento de cada vez. Mistério que a vida me emprestou: tonteei de alturas. Antes, eu percebi a beleza daqueles pássaros, no Rio das Velhas –

percebi para sempre. O manuelzinho-da-troa. Tudo isso posso vender? Se vendo minha alma, estou vendendo também os outros. Os cavalos relincham sem causa; os homens sabem alguma coisa da guerra? Jagunço é o sertão. O senhor pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo? Mas aquele menino, o Valtei, na hora em que o pai e a mãe judiavam dele por lei, ele pedia socorro aos estranhos. Até o Jazevedão, estivesse ali, vinha com brutalidade de socorro, capaz. Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Deus é que me sabe. O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dançada – só o debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo –

conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo.

Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua...

Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O

que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto?

Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em vez do outro – e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mesmo – posso? – então não desmancha na rãs tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor: remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e que culpa tem o homem? Às vezes não aceito nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta.

Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho é porém por todos. É

preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gente com sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa –

uma só, diversa para cada um – que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons – todo grau de pessoa.

Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serão bons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na.consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porquê. Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas; também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo?

Não. Estou dando batalha. É preciso negar que o “Que-Diga”

existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas dizer. O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo.

Agora, no que eu tive culpa e errei, o senhor vai me ouvir.

Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Oi-Mãe, o rio Soninho, a Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, seja. Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo de chuva e mais chuva, a gente se fervia – debaixo desses extraordinários de Zé Bebelo – a gente lambia guerra. Zé Bebelo Vaz Ramiro-viva o nome! A gente vinha sobre o rastro deles, dos Hermógenes – por matar, por acabar com eles, por perseguir. No borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. Às artes que fugiam. Mas eu com aquilo já tinha inteirado costume. Era ruim e era bom.

Aí quando muito vento abriu o céu, e o tempo deu melhora, a gente estava na erva alta, no quase liso de altas terras.

Se ia, aos vintes e trintas, com Zé Bebelo de bota-fogo. Assim expresso, chapadão voante. O chapadão é sozinho – a largueza.

O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal.

As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras – araral – conver-santes. Aviavam vir os periquitos, cota o canto-clim. Ali chovia?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Chove – e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama: a chuva inteira se soverse em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão,chapadão.

De dia, é um horror de quente, mas para a noitinha refresca, e de madrugada se escorropicha o frio, o senhor isto sabe. Para extraviar as mutucas, a gente queimava folhas de arapavaca. Aquilo bonito, quando tição aceso estala seu fim em faíscas – e labareda dalalala. Alegria minha era Diadorim.

Soprávamos o fogo, juntos, ajoelhados um frenteante o ao outro.

A fumaça vinha, engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que fevereiro é o mês mindinho: mas é quando todos os cocos do buritizal maduram, e no céu, quando estia, a gente acha reunidas as todas estrelas do ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitolô. Um Pitolô, sei lá, cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a guerra. Eu, no gozo de minha idéia, era que o amor virava

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senvergonhagem.Turvei, tanto. – “Andorinha que vem e que vai, quer é ir bem pousar nas duas torres da matriz de Carinhanha...”

– o Pitolô falava. Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido. E em Otacília, eu não pensava? No escasso, pensei. Nela, para ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com ela passeava, no laranjal de lá. Otacília, mel do alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava. Hoje sei. E era nessas boas horas que eu virava para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por cima de estados escuros.

Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era para gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola – isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, para esgaravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas. No mais, nem mortalma.

Dias inteiros, nada, tudo o nada – nem caça, nem pássaro, nem codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé Bebelo, andante, estava esperdiçando o consistir. E que o Hermógenes só fizesse por se fugir toda a vida, isso ele não entendia. – “Vai cavacando buraco, vai, que tu vê!” – oco da paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias, ele menos falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos – em decisões de necessidade forte e vida virada – horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente de prosa já me aborrecia.

A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a bem-dizer, minha noiva? Mas eu carecia era de mulher

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