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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas com os outros, não enxergar Zé Bebelo eu achava melhor.
Montamos e sumimos por aqueles campos, essa estrada, esses pequizeiros. – “Homem engraçado, homem doido!” – Diadorim ainda achava. – “Sabe o que ele falou, como foi?” E me deu notícia.
Tinha sido aquilo: Joca Ramirochegando, real, em seu alto cavalo branco, e defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas, mesmo assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a baixo. Daí disse:
– “Dê respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro, mas eu sou seu igual. Dê respeito!”
– “O senhor se acalme. O senhor está preso...” – Joca Ramiro respondeu, sem levantar a voz.
Mas, com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para debicar, com um engraçado atrevimento:
– “Preso? Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor vê não é o que o senhor vê, compadre: é o que o senhor vai ver...”
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “Vejo um homem valente, preso...” – aí o que disse Joca Ramiro, disse com consideração.
– “Isso. Certo. Se estou preso... é outra coisa...” – “O que, mano velho?”
“... É, é o mundo à revelia!...” – isso foi o fecho do que Zé Bebelo falou. E todos que ouviram deram risadas.
Assim isso. Toleimas todas? Não por não. Também o que eu não entendia possível era Zé Bebelo preso. Ele não era criatura que se prende, pessoa coisa de se haver às mãos.
Azougue vapor...
E ia ter o julgamento.
Tanto que voltamos, manhã cedinho estávamos lá, no acampo, debaixo de forma. Arte, o julgamento? O que isso tinha de ser, achei logo que ninguém ao certo não sabia. O
Hermógenes me’ ouviu, e gostou: – “É e é. Vamos ver, vamos ver, o que não sendo dos usos...” – foi o que ele citou. – “Ei, agora é julgamento!” – os muitos caçoavam, em festa fona.
Cacei de escutar os outros. – “Está certo, está direito. Joca Ramirosabe o que faz-..” – foi o que disse Titão Passos. –
“Melhor, mesmo. Carece de se terminar o mais definitivo com
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas essa cambada!” – falou Ricardão. E só Candelário, que agora não se apeava, vinha exclamando: – “Julgamento É isto! Têm de saber quem é que manda, quem é que pode!” Ao espraia as margens.
Agora estavam todos mais todos reunidos, estávamos no acampamento do É-Já, onde ali mal tanto povo cabia, e lotes e pontas de burros, a cavalhada pastando, jagunços de toda raça e qualidade, que iam e vinham, co, miam, bebiam, bafafavam. Só Candelário tinha remetido dois homens, longe, no São José Preto, só para comprarem foguetes, que no fim teriarA de pipocar. E onde estava Zé Bebelo? Apartado, recolhido de toda vista, numa tenda de lona – essa única que se tinha, porque Joca Ramiro mesmo se desacostumava de dormir em barraca, por o abafo do calor. Não se podia ver o prisioneiro, que ficava lá dentro, feito guardado. Contaram que ele aceitava comida e água, e estivesse deitado num couro de vaca, pitando e pensando.
Gostei. O de que eu carecia era de que ele não botasse olhos em mim. Eu apreciava tanto aquele homem, e agora ele não havia de ser meu pesadelo. – “Aonde é que vamos? Onde é que esse julgamento vai ser?” – perguntei a Diadorim, quando surpreendi os suspensos de se ter saída. – “Homem, não sei...” –; Diadorim disso não sabia. Só depois se espalhou voz. Ao que se ia para a
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Fazenda Sempre-Verde, depois da Fazenda Brejinho-do-Brejo, aquela a do doutor Mirabô de Melo.
Mas, por que causa iam dar com aquele homem tamanha passeata? Carecia algum? Diadorim não me respondeu. Mas, pelo que não disse e disso, tirei por tino. Assim que Joca Ramiro fazia questã de navegar três léguas a longe com acompanhamento de todos os jagunços e capatazes e chefes, e g prisioneiro levado em riba dum cavalo preto, e todas as tropas, com munição, coisas tomadas, e mantimentos de comida, rumo do Norte – tudo por glória. O julgamento, também. Estava certo? Saímos, de trabuz.
No naquele, a gente podia ver resenho de toda geração de montadas. Zé Bebelo lá ia, rodeado por cavaleiros de guarda, pessoal de Titão Passos, logo na cabeça do cortejo. Ia com as mãos amarradas, como de uso? Amarrar as mãos não adiantava.
Eu não quis ver. Me dava travo, me ensombrecia. Fui ficando para trás. Zé Bebelo, lá preso demais, em conduzido. Aquilo com aquilo – aí a minha idéia diminuía. Tanto o antes, que fiz a viagem toda na rabeira, ladeando o bando bonzinho de jegues orelhudos, que fechavam a marcha. A pobreza primeira deles me consolava – os jumentinhos, feito meninos. Mas ainda pensei: –
ele bom ou ele ruim, podiam acabar com Zé Bebelo? Quem tinha capacidade de pôr Zé Bebelo em julgamento?! Então, ressenti um
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fundo desânimo. Sem mais Zé Bebelo, então, o restado consolo só mesmo podia ser aqueles jericos baianos, que de nascença sabiam todas as estradas.
Assim passamos pelo Brejinho-do-Brejo, assim chegamos na Sempre Verde. Aí fomos chegando. Que me deu, de repente?
Esporeei e galopeis para dianteira, fomentado, repinchando dessas angústias. Vim. Eu queriá sobressalto de estar ali perto, catar tudo nos olhos, o que acontecia maior. Nem não importei mais que Zé Bebelo me visse. Passei quase para a frente de todos.
Estavam pensando que eu viesse com um recado. – “Que foi, Riobaldo, que foi?” – gritou para mim Diadorim. Dei nenhuma resposta. pessoa ali não me entendia. Só mesmo Zé Bebelo era quem pudesse me entender.
A Fazenda Sempre-Verde era a casa enorme, viemos saindo da estrada e entrando nas cheganças, os currais-de-ajuntamento.
Aquele mundo de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório.
Antes passei, afanhou a porteira, aí fomos enchendo os currais, com tantos os nossos cavalos. A casade-fazenda estava fechada.
– “Não carece de se abrir... Não carece de se abrir...” – era uma ordem que todos repetiam, de voz em voz. Ave, não arrombassem, aquilo era de amigos, o doutor Mirabô de Melo,
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