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– 407 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Guararavacã, eu estava bem. O gado ainda pastava, meu vizinho, cheiro de boi sempre alegria faz. Os quem-quem, aos casais, corriam, catavam, permeio às reses, no liso do campo claro. Mas, nas árvores, pica-pau bate e grita. E escutei o barulho, vindo do dentro do mato, de um macuco – sempre solerte. Era mês de macuco ainda passear solitário – macho e fémea desemparelhados, cada um por si. E o macuco vinha andando, sarandando, macucando: aquilo ele ciscava no chão, feito galinha de casa. Eu ri – “Vigia este, Diadorim!” – eu disse; pensei que Diadorim estivesse em voz de alcance. Ele não estava. O macuco me olhou, de cabecinha alta. Ele tinha vindo quase endireito em mim, por pouco entrou no rancho. Me olhou, rolou os olhos.

Aquele pássaro procurava o quê? Vinha me pôr quebrantos. Eu podia dar nele um tiro certeiro. Mas retardei. Não dei. Peguei só num pé de espora, joguei no lado donde ele. Ele deu um susto, trazendo as asas para diante, feito quisesse esconder a cabeça, cambalhota fosse virar. Daí, caminhou primeiro até de costas, fugiu-se, entrou outra vez no mato, vero, foi caçar poleiro para o bom adormecer.

O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente –

“Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo?

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim-que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas – de dentro de mim: uma serepente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí, levantei.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que vale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado. – “Hê, Riobaldo, eh, uê, você carece de alguma coisa?” – ele me perguntou, quem-me-vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. “Se é o que é” – eu pensei – “eu estou meio perdido...” Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia

– virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro –

no mato – um tiraço que ribombou. – “Ao que foi?” – me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. – “Acho que um macaquinho miúdo, que acho que errei...” – eu expendi.

Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...” Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe: nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?

Segundo digo, o tempo que paramos na Guararavacã do Guaicuí regulou em dois meses. Bom ermo. De lá, a gente cruzou as vizinhanças todas, fizemos grande redondeza. Todo dia, trocávamos recado de avisos com o pessoal do Alaripe.

Notícia, nenhumas. Nada não chegava em envio, do que fosse para chegar. Da outra banda do rio, se sucedeu a queima dos campos: quando o vento dava para trás, trazia as tristes fumaças.

De noite, o morro se esclarecia, vermelho, asgrava em labaredas e brasas. Da banda de cá, num rumo, daí a obra de duas léguas, tinha uma lavourinha, de um sujeito ainda moço, que era amigo nosso. – “Ah, se ele quisesse alugar a mulherzinha dele para a gente, bem caros preços que eu pagava...” – assim o que dizia o Paspe, suspiroso. Mas quem vinha eram os meninos do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas lavrador, montados num cavalo magro, traziam feixes de cana, para vender para a gente. Às vezes, vinham em dois cavalos magros, e eram cinco ou seis meninos, amontados, agarrados uns nos outros, uns mesmo não se sabia como podiam, de tão mindinhos. Esses meninozinhos, todos, queriam todo o tempo ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim gostava deles, pegava um por cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do rio. –

“Olha, vigia: o manuelzinho-da-troa já acabou de fazer a muda...” Um dia, em que tínhamos caçado uma paca bem gorda, o Paspe pitou de sal um quarto dela, enrolou em folhas, e deu ao menino mais velho: – “P’ra tu leva de presente, dá à tua mãe, fala que quem mandou fui eu...” – ele recomendou. A gente ria.

Os meninos receavam o gado: ali no meio tinha reses muito bravas, um dia uma vaca deu corrida em alguém, querendo bater. Mas, depois, com o secar, de magros e fracos os bois se atolavam no embrejado, até morreram alguns. Os urubus espaceavam, quando o céu empoeirado. Pousavam no pindaibal do brejo. João Vaqueiro chamava a gente, ia desatolar os bois que podia. Uns eram mansos: por um punhado de sal, se chegavam, lambiam o chão nos pés da gente. João Vaqueiro sabia tudo. Chega passava a mão nas tetas de uma vaca – capins

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tão bons, o senhor crê? – algumas ainda guardavam leite naqueles peitos. – “A gente carecia era de dar um fogo, de sair por aí, por combate...” – sensato se dizia. Que jagunço amolece, quando não padece.

A quase meio-rumo de norte e nascente, a quatro léguas de demorado andamento, tinha uma venda de roça, no começo do cerradão. Vendiam licor de banana e de pequi, muito forte, geléia de mocotó, fumo bom, marmelada, toucinho. Sempre só um de nós era que ia lá – para não desconfiarem. Ia o Jesualdo.

A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que queria. Diadorim mandou comprar um quilo grande de sabão de coco de macaúba, para sé lavar corpo. O dono da venda tinha duas filhas, o Jesualdo cada vez que voltava carecia de explicar à gente, de dia é de noite, como elas eram, formosuramente. – “Ei, que quando vier o tempo, que de guerra se tiver licença, ah, e se esse vendeiro for contra nós, ah, eu vou lá, pego uma das duas, de mocinha faço ela virar mulher...” – o Vove disse. – “O que tu não faz! Porque o que eu quero é o exato: que eu vou’ lá, prezado peço em casamento, e nóivo...” –

o Triol contestou. E o Liduvino e o Admeto cantavam coisas de sentimento, cantavam pelo nariz.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas eles não sabiam. – “Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas...” – eles desqueriam.

Daí, deu um sutil trovão. Trovejou-se, outro. As tanajuras revoavam. Bateu o primeiro toró de chuva. Cortamos paus, folhagem de coqueiros, aumentamos o rancho. E vieram uns campeiros, rever o gado da Tapera Nhã, no renovame, levaram as novilhas em quadra de produzir. Esses eram homens tão simples, pensaram que a gente estava garimpando ouro. Os dias de chover cheio foram se emendando. Tudo igual – às vezes é uma sem-gracez. Mas não se deve de tentar o tempo. As garças é que praziam de gritar, o garcejo delas, e o socó-boi range cincerros, e o socó latindo sucinto. Aí pelo mato das pindaíbas avante, tudo era um sapal. Coquexavam. De tão bobas tristezas, a gente se ria, no friinho de entrechuvas. Dada a primeira estiada, voltou aquele vaqueiro Bernabé, em seu cavalinho castanho; e vinha trazer requeijão, que se tinha incumbido a ele, e que por dinheirinho bom se pagou. – “A vida tem de mudar um dia para melhor” – a gente dizia. Requeijão é com café bem quente que é mais gostoso. Aquele vaqueiro Bernabé voltou, outras diversas vezes.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Ah, e, vai, um feio dia, lá ele apontou, na boca da estrada que saía do mato, o cavalinho castanho dava toda pressa de vinda, nem cabeceava. Achamos que fosse mesmo ele. Aí, não era. Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas, dos copos do freio à boca da bota, e pelos vazios do cavalo. Esbarrou e desapeou, num pronto ser, se via que estava ancho com muitas plenipotências. O que era?

O Gavião-Cujo abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele gaguejou ar e demorou – decerto porque a notícia era urgente ou enorme. – “Ar’uê, então?!” – Titão Passos quis. – “Te rogaram alguma praga?” O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. À fé, quase gritou:

– “Mataram Joca Ramiro!...”

Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de Diadorim : todos os homens se encostavam nas armas. Aí, ei, feras! Que no céu, só vi tudo quieto, só um moído de nuvens.

Se gritava – o araral. As vertentes verdes do pindaibal avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou as ordens.

Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo.

Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava.

– “Repete, Gavião!”

– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...” –

“Quem? Adonde? Conta!”

Arre, eu surpreendi eriço de tremor nos meus braços.

Secou todo cuspe dentro do estreito de minha boca. Até atravessado, na barriga, me doeu. Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço que outros

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.

– “... Matou foi o Hermógenes...”

– “Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demônio!

Traição! Que me paga!...” – constante não havendo quem não exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade.

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