"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Add to favorite ,,Grande Sertão: Veredas'' - de João Guimarães Rosa,

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Assim Joca Ramiro tinha morrido. E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo – e a tristeza em cru – sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.

– “... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O

Antenor... Muitos...

– “Mas, adonde onde!?”

– “A desgraça foi num lugar, na Jerara, terras do Xanxerê, beira da Jerara – lá onde o córrego da Jerara desce do morro do Vôo e cai barra no Riachão... Riachão da Lapa... Diz-se que foi sido de repente, não se esperava. Aquilo foi à traição toda.

Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente. Aí,

– 417 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mortos: João Frio, o Bicalho, Leôncio Fino, Luís Pajeú, o Cambó, Leite-de-Sapo, Zé Inocêncio... uns quinze. Até se deu um tiroteio terrível; mas o pessoal do Hermógenes e do Ricardão era demais numeroso... Dos bons, quem pôde, fugiram corretamente. Silvino Silva conseguiu fuga, com vinte e tantos companheiros...”

Mas Titão Passos, de arrompe, atalhou a narração, ele agarrou o Gavião-Cujo pelos braços:

– “Hem, diá! Mas quem é que está pronto em armas, para rachar Ricardão e Hermógenes, e ajudar a gente na vingança agora, nas desafrontas? Se tem, e ond’é então que estão?!”

– “Ah, sim, chefe. Os todos os outros: João Goanhá, Só Candelário, Clorindo Campelo.,. João Goanhá pára com porçanheira de homens, na Serra dos Quatis. Aí foi ele quem me mandou trazer este aviso... Só Candelário ainda está para o Norte, mas o grosso dos bandos dele se acha nos pertos da Lagoa-do-Boi, em juramento... Já foi portador para lá. Sendo que se despachou um positivo também para dar parte a Medeiro Vaz, nos Gerais, no de lado de lá do Rio... Sei que o sertão pega em armas, mas Deus é grande!”

– 418 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

– “Louvado. Ah, então: graças a Deus! Ao que, então, está bem...” – Titão Passos se cerrou.

E estava. Era a outra guerra. A gente ficávamos aliviados.

Aquilo dava um sutil enorme.

– “Teremos de ir... Teremos de ir...” – falou Titão Passos, e todos responderam reluzentemente. Tínhamos de tocar, sem atraso, para a Serra dos Quatis, a um lugar dito o Amoipira, que é perto de Grão Mogol. Artes que o Gavião-Cujo ainda contava mais, as miúcias – parecia que tinha medo de esbarrar de contar.

Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem sofrer. – “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou, numa voz de mais dor, como saía ansiada. Que não sabia-o Gavião-Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto empa-lidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. – “Um homem de

– 419 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...” – ele me disse, dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova.

A daí, carecia fosse alguém do lado de lá do morro, pela gente do Alaripe. – “Pois vamos, Riobaldo!” – Diadorim se pôs.

Vi que ele fervia ali assim no pego do parado. Selamos os cavalos. Serra acima, fomos. Ao no galope, cada um engolia suas palavras. A mesmo estava o céu encoberto, e um mormaço.

Mas, na descambada, Diadorim me reteve, me entregou á ponta do cabresto para segurar. – “De tudo nesta vida a gente esquece, Riobaldo. Você acha então que vão logo olvidar a honra dele?”

– me perguntou. Devo que retardei muito em responder, com cara de não compreensão. Porque Diadorim completou: – “...

dele, a glória do finado. Do que se finou...” E dizia aquilo com uma misturação de carinho e raiva, tanto desespero que nunca vi. Desamontou, foi andando sem governar os passos, tapado pelas moitas e árvores. Eu restei ficando tomando conta do ca-

– 420 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas valo. Pensei que ele tivesse ido a lá, por necessitar. Mas demorou tanto a volta, que eu resolvi tocar atrás, para o que havia ver, esporei e vim puxando o cavalo dele adestro. E aí o que vi foi Diadorim no chão, deitado debruços. Soluçava e mordia o capim do campo. A doideira. Me amargou, no cabo da língua. – “Diadorim!” – chamei. Ele, sem se aprumar, virou o rosto, apertou os olhos no choro. Falei, falei, meus consolos, e ele atendia, em querelenga, me pedindo que sozinho fosse, deixasse ele ali, até minha volta. – “Joca Ramiro era seu parente, Diadorim?” – eu indaguei, com muita cordura. – “Ah, era, sim...” – ele me respondeu, com uma voz de pouco corpo. –

“Seu tio, será?” – Que era... – ele deu, em gesto. Entreguei a ele o cabresto do cavalo, e continuei ida. Em certa distância, para prevenir os alaripes, e evitar atraso, esbarrei e disparei tiros, para o ar, umas vezes. Cheguei lá, estavam todos reunidos, por meu feliz. E estava chovendo, de acordo com o mormaço. – “Trago notícia de grande morte!” – sem desapear eu declarei. Eles todos tiraram os chapéus, para me escutar. Então, eu gritei: – “Viva a fama do nosso Chefe Joca Ramiro... “ E, pela tristeza que estabeleceu minha voz, muito me entenderam. Ao que quase todos choraram. – “Mas, agora, temos de vingar a morte do falecido!” – eu ainda pronunciei. Se aprontaram num átimo,

– 421 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas para comigo vir. – “Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria...” – no caminho o Alarípe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade.

Mas assim se deu que, no seguinte dia, no romper das barras, saímos tocando, Diadorim do meu lado, mudado triste, muito branco, os olhos pisados, a boca vencida. Deixamos para trás aquele lugar, que disse ao senhor, para mim tão célebre – a Guararavacã do Guaicuí, do nunca mais.

Redeando, rumamos, em tralha e torto, por aquele afora –

a gente ia investir o sertão, os mares de calor. Os córregos estavam sujos. Aí, depois, cada rio roncava cheio, as várzeas embrejavam, e tantas cordas de chuva esfriavam a cacunda daquelas serras. A terrível notícia tinha se espalhado assaz, em todas as partes o povo fazia questão de obsequiar à gente, e falavam muito bem do falecido. Mas nós passávamos, feito flecha, feito faca, feito fogo. Varamos todos esses distritos de gado.

Assomando de dia por dentro de vilórios e arraiais, e ocupando a cheio todas as estradas, sem nenhum escondimento: a gente queria que todo o mundo visse a vingança! Alto do Amoipira, quando terminamos lá, os cavalos já afracavam. João Goanhá,

– 422 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas em toda economizada estatura, foi ver a gente vindo e abriu seus bons braços. Ele estava com próprios trezentos guerreiros. E

sempre outros chegavam. – “Meu irmão Titão Passos... Meu irmão Titão Passos...” – ele falou, crescente. – “E vocês todos, valentes cabras... Agora é que vai ser a grande briga!” Disse que com três dias se saía em armas. João Goanhá ia na vaca e no boi: não estava com por’oras. E Só Candelário, onde era que estava? Só Candelário, piorado doente, devia de estar um tempo desses nos Lençóis, para onde portador seguira, com pressa de chamado. Mesmo assim, João Goanhá desnecessitava de esperar por ele, para aos dois judas traidores dar batalha. No que achamos bom conselho. E outros vinham chegando, oferecendo peito de ajuda, com prestança em ponta. Veio até quem não se imaginou: como aquele Nhão Virassaia, com seus trinta e cinco cacundeiros – o que carregava nome de fama por todo o Rio VerdeGrande. E o velho Ludujo Filgueiras, montesclarense, com vinte e dois atiradores. E o grande fazendeiro coronel Digno de Abreu, que mandou, seus, trinta e tantos capangas, também, por Luís de Abreuzinho comandados, que era dele filho-natural. E o gado em pé que se provia, para se abater e se comer, chegava a ser uma boiada. Com sacas de farinha, surrão de sal, e açúcar preto e café – até em carro-de-bois os mantimentos de fubá e

– 423 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas arroz e feijão entregados. Só em quantidades de munição era que a gente não produzia luxo, e Titão Passos se entristeceu de não poder ter trazido a nossa, na Guararavacã tão em vão esperada.

Mas a lei de homem não é seus instrumentos. Saímos em guerra.

Ãhã, do norte, da Lagoa-do-Boi, com troca de avisos, sobrevinha também o bastante da rapaziada dos baianos, debaixo do comando de Alípio Mota, cunhado de Só Candelário. A simples íamos cercar bonito os Judas, não tinham escape. Aindas que se escapassem para o poente, atravessassem o rio, ah, encontravam ferro e fogo: lá estava Medeiro Vaz – o rei dos Gerais!

Saímos, sobre, fomos. Mas descemos no canudo das desgraças, ei, saiba o senhor. Desarma do tempo, hora de paga e perdas, e o mais, que a gente tinha de purgar, segundo se diz.

Tudo o melhor fizemos, e tudo no fim desandava. Deus não devia de ajudar a quem vai por santas vinganças?! Devia. Nós não estávamos forte em frente, com a coragem esporeada? Estávamos. Mas, então? Ah, então: mas tem o Outro – o figura, o morcegão, o tunes, o cramulhão, o debo, o carocho, do pé-de-pato, o mal-encarado, aquele – o-que-não-existe! Que não existe, que não, que não, é o que minha alma soletra. E da existência desse me defendo, em pedras pontudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia! Ah, só Ela

– 424 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas me vale; mas vale por um mar sem fim... Sertão. Se a Santa puser em mim os olhos, como é que ele pode me ver?! Digo isto ao senhor, e digo: paz. Mas, naquele tempo, eu não sabia. Como é que podia saber? E foram esses monstros, o sobredito. Ele vem no maior e no menor, se diz o grão-tinhoso e o cão-miúdo. Não é, mas finge de ser. E esse trabalha sem escrúpulo nenhum, por causa que só tem um curto prazo. Quando protege, vem, protege com sua pessoa. Montado, mole, nas costas do Hermógenes, indicando todo rumo. Do tamanho dum bago de aí-vim, dentro do ouvido do Hermógenes, por tudo ouvir. Redondinho no lume dos olhos do Hermógenes, para espiar o primeiro das coisas. O

Hermógenes, que – por valente e valentão – para demais até ao fim deste mundo e do juízofinal se danara, oco de alma. Contra ele a gente ia. Contra o demo se podia? Quem a quem? Milagres tristes desses também se dão. Como eles conseguiram fugir das unhas da gente, se escaparam – o Ricardão e o Hermógenes – os Judas. Pois eles escapuliram: passaram perto, légua, quarto-delégua, com toda sua jagunçama, e não vimos, não ouvimos, não soubemos, tivemos jeito nenhum para cercar e impedir.

Avançaram, calados, escorregando pelos matos, ganhando o mais poente, para o São Francisco. Atravessaram por nós, sem a gente perceber, como a noite atravessa o dia, da manhã à tarde, seu

– 425 –

João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pretume dela escondido no brancor do dia, se presume. Quando pudemos saber, a distância deles já era impossível. Nós estávamos pegando o ar. Duro de desanimável, hem? E pois demore o senhor para o pior: o que veio em sobre!: os soldados do Governo. Os soldados, soldadesca, tantas tropas. Surgiram de todos os lados, de supetão, e agatanhavam, naquela sanha, é ver cachorrada caçante. Soldados do Tenente Plínio – companhia de guerra. Tenente Reis Leme, outra. E veio depois, com muitos mais outros, um capitão Carvalhais, maior da marca, esse bebia café em cuité e cuspia pimenta com pólvora. Sofremos, rolamos por aí aqui, se rolou. vida é vez de injustiças assim, quando o demo leva o estandarte. Pois – aquela soldadama viera para o Norte era por vingar Zé Bebelo, e Zé Bebelo já andava por longes desterrado, e nisso eles se viravam contra a gente, que éramos de Joca Ramiro, que tinha livrado a vida de Zé Bebelo das facas do Hermógenes e Ricardão; e agora, por sua ação, o que eles estavam era ajudando indireto àqueles sebaceiros. Mas, quem era que podia explicar isso tudo a eles, que vinham em máquina enorme de cumprir o grosso e o esmo, tendo as garras para o pescoço nosso mas o pensante da cabeça longe, só geringonciável na capital do Estado?

– 426 –

Are sens