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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas De contar tudo o que foi, me retiro, o senhor está cansado de ouvir narração, e isso de guerra é mesmice, mesmagem.

Combatemos o quanto mais pudemos – está aí. Consoante começou, no Curral de Vacas, perto do Morro do Cocuruto, onde nos pegaram num relaxo. Fugimos, depois de grande fogo.

Fogo demos daí no Cutica, na Chapada Simão Guedes: mas rodaram com a gente, de retruz. Serra da Saudade: a gente se desarranjou, fugimos, bem. Ah, e: Córrego Estrelinhas, Córrego da Malhada Grande, Ribeirão Traçadal – tudo foram as feiezas.

Recito frente ao senhor: e é rol de nomes? Para mim ficaram em assento de sustos e sofrimento. Nunca me queixei. Sofrimento passado é glória, é sal em cinza. De tanta maneira Diadorim assistia comigo, como um gravatá se fechou. Semeei minha presença dele, o que da vida é bom eu dele entendia. Tomando o tempo da gente, os soldados remexiam este mundo todo. Milho crescia em roças, sabiá deu cria, gameleira pingou frutinhas, o pequi amadurecia no pequizeiro e a cair no chão, veio veranico, pitanga e caju nos campos. Ato que voltaram as tempestades, mas entre aquelas noites de estrelaria se encostando. Daí, depois, o vento principiou a entortar rumo, mais forte – porque o tempo todo das águas estava no se acabar. Tenente Reis Leme nos escaramuçando: queria correr com a gente a pano de sabre.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Matou-se montanha de bons soldados. Estávamos em terras que entestam com a Bahia. Em Bahia entramos e saímos, cinco vezes, sem render as armas. Isto que digo, sei de cor: brigar no espinho da caatinga pobre, onde o cãcã canta. Chão que queima, branco! E aqueles cristais, pedra-cristal quase de sangue...

Chegamos até no cabo do mundo.

Quadrante o que havia, me esconjuro. Parecia que a gente ia ter de passar o resto da vida guerreando com os praças? Mas nosso constar era outro, com sangue de urgência – aquela luta de morte contra os Judas – e que era briga nossa particular. Não se tendo recurso competente. Ah, Diadorim mascava. Para ódio e amor que dói, amanhã não é consolo. Eu mesmeava. Mas, dando um dia, a gente teve certas notícias: os do Hermógenes estando senhores arranchados, conforme retouçavam, da banda de lá do Rio do Chico: nas vertentes da beira da mão direita do Carinhanha, no Chapadão de Antônio Pereira. Questionou-se nisso. Se pensou e falou em tudo por fazer e não fazer. Resultado foi este: que o principal era a gente mandar reforço, para Medeiro Vaz, uns cinqüenta ou cem homens, repartidos em miúdos grupos, caçando jeito de safança por entre os lugares perigáveis.

Enquanto tanto, João Goanhá, Alípio Mota e Titão Passos, cada qual de lado seu, deviam de ir desmanchar os rastos na caatinga,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas e depois se esconderem, por uns tempos, em fazendas de donos amigos, até que a soldadesca se espairecesse. E era bom e era justo. Era certo. Deus em armas nos guardava.

De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro, e o Fafafa. Era para o outro lado, era para os meus Gerais, eu vinha alegre contente. E saímos, com o seguinte risco: o Imbiruçu, a Serra do Pau-d’Arco, o Mingu, a Lagoa dos Marruás, o Dôminus-Vobíscum, o Cruzeiro-das-Embaúbas, o Detrás-das-Duas-Serras. O Brejo dos Mártires, a Cachoeirinha Roxa, o Mocó, a Fazenda Riacho-Abaixo, a Santa Polônia, a Lagoa da Jabuticaba. E daí, por uns atalhos: o Córrego Assombrado, o Sassapo, o Poço d’Anjo, o Barreiro do Muquém.

Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei.

Severgonhei. Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, comprei roupas. O vau do mundo é a alegria! Mas Diadorim não se fornecia com mulher nenhuma, sempre sério, só se em sonhos. Dele eu ainda mais gostava. E então se deu que tínhamos esbarrado em frente da Lagoa Clara. Já era o do Chico

– o poder dele – largas águas, seu destino. A ver, o porto-de-balsa, que distava pouco. Travessia, ali, podia ser perigosa, com tantos soldados vizinhantes. A gente se apartar? Ah, mas o que bastava o balseiro se chamar: – “Hô, passador! Hô, passador!...”

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– ele viesse. Assim, para uma invenção, que se teve. O balseiro só avistando João Vaqueiro e o Fafafa – estes ele então podia passar, com cinco dos cavalos, falavam que era para uns caçadores. Da outra banda, João Vaqueiro e o Fafafa fossem levando os cavalos para um lugar para cima da barra, no Urucuia, chamado o Olho-d’Agua-das-Outras. Lá a gente se encontrava.

Somente ficados com um cavalinho só, Alaripe e eu, Diadorim e Jesualdo, andamos beira-rio, no vagarosamente. A gente esperava o que acontecesse. Ali mais adiante, era um porto-de-lenha. – “Você tem receio, Riobaldo?” – Diadorim me perguntou. Eu?! Com ele em qualquer parte eu embarcava, até na prancha de Pirapora! – “Vau do mundo é a coragem...” – eu disse. E, com os rifles escorados, acenamos para uma grande barca – aquela, a cara-de-pau que tinha no bico da frente era uma cabeça de touro, boa-sorte nos dava. O barqueiro tocou um berro no buzo, encostaram. A gente os quatro, com o cavalo, era nada – as arrobazinhas. E nós entramos, depois que o patrão nos saudou, em nome de Nosso Senhor CristoJesus, e disse: – “Eu cá sou amigo de todos, segundo a minha condição...” E o Alaripe aceitou dele um gole de cachaça, aceitamos. Jesualdo disse, re-postando: – “Amigo de todos? Rio-abaixo, na canoa, quem governa é o remador!” Bem que rio-acima é que era, mas com

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas remeiros muito bons esforçados. Aí constante, o velejo, vento em pano – nem remeiro com o varejão não carecia de fazer talento. Pediram notícias do sertão. Essa gente estava tão devolvida de tudo, que eu não pude adivinhar a honestidade deles. O sertão nunca dá notícia. Eles serviram à gente farta jacuba. – “Por onde os senhores vieram?” – o patrão indagou. –

“Viemos da Serra Rompe-Dia...” – respondemos. Mentiras d’água. Tanto fazia dizer que tínhamos vindo da de São Felipe. O

barqueiro não acreditou, deu o zé de ombros. Mas levou a gente travessia fácil, frenteando a boca do Urucuia. Ah, o meu Urucuia, as águas dele são claras certas. E ainda por ele entramos, subindo légua e meia, por isso pagamos uma gratificação. Rios bonitos são os que correm para o Norte, e os que vêm do poente – em caminho para se encontrar com o sol. E descemos num pojo, num ponto sem praia, onde essas altas árvores – a caraíba-de-flor

– roxa, tão urucuiana. E o folha-larga, o aderno-preto, o pau-de-sangue; o pau-paraíba, sombroso. O Urucuia, suas abas. E vi meus Gerais!

Aquilo nem era só mata, era até florestas! Montamos direito, no Olhod’Agua-das-Outras, andamos, e demos com a primeira vereda – dividindo as chapadas –: o flaflo de vento agarrado nos buritis, franzido no gradeai de suas folhas altas; e,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sassafrazal – como o da alfazema, um cheiro que refresca; e aguadas que molham sempre. Vento que vem de toda parte.

Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade.

Mas liberdade – aposto – ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível?

Lengalenga. Fomos, fomos.

Assim pois foi, como conforme, que avançamos rompidas marchas, duramente no varo das chapadas, calcando o sapê brabão ou areias de cor em cimento formadas, e cruzando somente com gado transeunte ou com algum boi sozinho caminhador. E como cada vereda, quando beirávamos, por seu resfriado, acenava para a gente um fino sossego sem notícia –

todo buritizal e florestal: ramagem e amar em água. E que, com nosso cansaço, em seguir, sem eu nem saber, o roteiro de Deus nas serras dos Gerais, viemos subindo até chegar de repente na Fazenda Santa Catarina, nos Buritis-Altos, cabeceira de vereda.

Que’s borboletas! E era em maio, pousamos lá dois dias, flor de tudo, como sutil suave, no conhecimento meu com Otacília. O

senhor me ouviu. Em como Otacília e eu ficamos gostando um

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas do outro, conversamos, combinados no noivável, e na sobremanhã eu me despedi, ela com sua cabecinha de gata, alva no topo da alpendrada, me dando a luz de seus olhos; e de lá me fui, com Diadorim e os outros. E de como viemos, em cata do grosso do bando de Medeiro Vaz, que dali a quinze léguas recruzava, da Ratragagem para a Vereda-Funda, e com eles nos ajuntamos, economizando rumo, num lugar chamado o Bom-Buriti. Me alembro, meu é. Ver belo: o céu poente de sol, de tardinha, a roséia daquela cor. E lá é cimo alto: pintassilgo gosta daquelas friagens. Cantam que sim. Na Santa Catarina. Revejo.

Flores pelo vento desfeitas. Quando rezo, penso nisso tudo. Em nome da Santíssima Trindade.

O que o seguinte foi este: o encontro da gente com Medeiro Vaz, no Bom-Buriti, num ressaco, conforme já disse, ele no meio de seus fortes homens, exatos, naquela bocaina de campo. Medeiro Vaz, retrata], barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: – “É bom homem...” E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorim beijou aquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção, se prezar.

Medeiro Vaz tomava rapé. Medeiro Vaz, mandando passar as ordens. E tinha quartel-mestre. Subindo em esperança, de lá

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas saímos, para chão e sertão. Sertão bravo: as araras. O só que Medeiro Vaz comandou foi isto: – “Aleluia!” Diadorim tinha comprado um grande lenço preto: que era para ter luto manejável, funo guardado em sobre seu coração. Chapadão de duro. Daí, passamos um rio vadoso – rio de beira baixinha, só buriti ali, os buritis calados. E a flor de caraíba urucuiã – roxo astrazado, um roxo que sobe no céu. Naquele trecho, também me lembro, Diadorim se virou para mim – com um ar quase de meninozinho, em suas miúdas feições. – “Riobaldo, eu estou feliz!...” – ele me disse. Dei um sim completo. E foi assim que a gente principiou a tristonha história de tantas caminhadas e vagos combates, e sofrimentos, que já relatei ao senhor, se não me engano até ao ponto em que Zé Bebelo voltou, com cinco homens, descendo o Rio Paracatu numa balsa de talos de buriti, e herdou brioso comando; e o que debaixo de Zé Bebelo fomos fazendo, bimbando vitórias, acho que eu disse até um fogo que demos, bem dado e bem ganho, na Fazenda São Serafim. Mas, isso, o senhor então já sabe.

Só sim? Ah, meu senhor, mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense, o senhor ache.

O senhor ponha enredo. Vai assim, vem outro café, se pita um bom cigarro. Do jeito é que retorço meus dias: repensando.

Assentado nesta boa cadeira grandalhona de espreguiçar, que é das de Carinhanha. Tenho saquinho de relíquias. Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? Eu quero ver essas águas, a lume de lua...

Urubu? Um lugar, um baiano lugar, com as ruas e as igrejas, antiqüíssimo – para morarem famílias de gente. Serve meus pensamentos. Serve, para o que digo: eu queria ter remorso; por isso, não tenho. Mas o demônio não existe real.

Deus é que deixa se afinar à vontade o instrumento, até que chegue a hora de se dançar. Travessia, Deus no meio. Quando foi que eu tive minha culpa? Aqui é Minas; lá já é a Bahia?

Estive nessas vilas, velhas, altas cidades... Sertão é o sozinho.

Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão?

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