Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do quê? A cruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acreditei que tivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava. E o demônio seria: o inteiro, louco, o doido completo – assim irremediável.
Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso.
Comigo eu começava numa espécie, o ror, vontade de ir para perto, reparar em tudo que fazia, dele escutar suas causas. Aos
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas poucos, o incutido do incerto me acostumando, eu não tirava isso da cabeça. O Hermógenes – ele dava a pena, dava medo.
Mas, ora vez, eu pressentia: que do demônio não se pode ter pena, nenhuma, e a razão está aí. O demônio esbarra manso mansinho, se fazendo de apeado, tanto tristonho, e, o senhor pára próximo – aí então ele desanda em pulos e prezares de dança, falando grosso, querendo abraçar e grossas caretas –
boca alargada. Porque ele é – é doido sem cura. Todo perigo. E, naqueles dias, eu estava também muito confuso.
– “Será, o Hermógenes também gosta de mulheres?” – eu careci de saber, perguntei. – “Eh. Apreceia não. Só se não gosta...” – um disse. – “Quá. Acho que ele gosta demais é só nem dele mesmo, demais, demais...” – algum outro atalhou. Que ele era assim – eu fiquei em pausas –: e os companheiros todos sabiam do ser; e achavam então que ato assim era possível natural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o assunto, já um vinha: – “Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho – lá tem logradouro. Tem fêmeas...” Esse que disse era o Dute, me parece; ou foi outro. Mas o Catocho desafirmou: que tinha estado lá, não viu ar de mulher-davida nenhuma, só uma vendinha de roça e uma velha pitando cachimbo, no batente duma porta, pitando cachimbo e trançando peneiras. Que que-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas riam mulheres principalmente a fim, estava certo; eu também. Eu queria, com as faces do corpo, mas também com entender um carinho e melhorrespeito – sempre a essas do mel eu dei louvor de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos: graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode, em algum ao lugarejo, para baixo de lá: do que batucavam, o pro-puxado das sanfonas, cachaça muita, as mulheres vinham dar umbigadas, tiravam a roupa, cavalheiros levavam damas nas moitas, no escuro do sebo; outros desafiavam outros para brigar.
Para quê? Por que não gozar o geral, mas com educação, sem as desordens? Saber aquilo me entristecia. Tem coisas que não são de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso de virarem, feito o que não é feito. Feito a garapa que se azeda. Viver é muito perigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença – e que devia de ser de figado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.
Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O
senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto –
inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas. Lembro que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz –
com vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso.
Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água, escutei o fife dum pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim.
Ele mesmo me disse, com o sorriso sentido:
– “Como passou, Riobaldo? Não está contente por me ver?”
A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo. Ao que, pela pancada do meu coração. Aí, mas um resto de dúvida: a inteira dúvida, que me embaraçava real, em a minha satisfação.
Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então, permaneci; não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavras dele. Mais falasse; retardei, limpei a goela.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas
– “A pois. Por onde andou, se mal pergunto?” – aí falei.
Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida, dita a minha nos grandes olhos, ele pronunciando:
– “Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou vendo. Você derradeiramente não tem passado bem?”
– “Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!”
Ao que Diadorim me deu a mão, que malamal aceitei. E ele disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho, recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiro que pegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão. Menos entendi. A real que estando ofendido, por que era que não havia de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura?
Doente não foge para um recanto, ou mato, solitário consigo, feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bem que criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado ido, e que feia ação para aprontar, com parte na fingida estória? As incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assim afetuoso, tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce. Magro ele estava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco man-
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cava. Que vida penosa não era capaz de ter levado, tantos dias, sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com emplastros de raízes e folhas, comendo o quê? Assunto de fome e toda sorte de míngua devia de ter penado. E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim?
Além do que era sazão de sentimento sereno: arte que a vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com assanhamentos. De formas que perdi o semelhar de tantos manejos e movimentos e a certa razão das ordens que a gente cumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazer meu particípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no meio desses perigos de fato. Sendo que a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?
Ao que, com João Goanhá de testa-chefe, saímos, uns cinqüenta, pegar uma tropa de cargueiros dos bebelos, que vinham ao descuidado, de noite, no Bento-Pedro – lugar num
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas braço de brejo, arrozal. Surpreender custou barato, bobearam as sentinelas, sem se haver um grito-de-armas, foi só pôr em fugida.
Aquela carga era enorme, maior em dobro, uma riqueza – tinha de tudo, até cachaça de pago imposto: as caixas de quarenta-e-oito garrafas cada. Ao tanto levamos os lotes de burros para esconder no Capão dos Ossos, onde tem carrascais e caminhos de caatinga pobre, com lagoas secando: as ipueiras verdolengas.
Daí, tivemos mando, no Poço-Triste, de tornar a amontar nos animais. Aquilo era uma alegria. Minha alma estava: o troteio, a poeirada que levantavam, os cavalos que rinchavam bem. Acinte bebi água de de-dentro dum gravatá em flor. Aquelas aranhas grandes armavam de árvore para árvore velhices de teia. Parecia que a guerra já tinha se terminado bem. – “Berimbau!” – um disse – “Agora é gozar gozo...” Mas. – “Ah, e Zé Bebelo?” –