Só vi um, o Jõe Bexiguento, sobrechamado o Alpercatas esse era homem de estranhez em muitos seus costumes,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas conforme se dizia e era notado. Jõe Bexiguento parecia não estar querendo ir dormir, tinha ficado na beira do fogo, remexendo as brasas; num fusco em vermelho, dava para a cara dele se divulgar.
E ele pitava. Meigo repus o rifle, virei para o outro lado.
Adormecer, pude; mas, com outros minutos, tornei naquele mau susto de acordar. Isso aconteceu três vezes, reformadas. Jõe Bexiguento reparou em meu dessossego, veio para o pé de minha rede, sentou no chão. – “Horas destas, tem galo já cantando, noutros lugares...” – ele falou. Não sei se dei alguma resposta.
Agora eu estava cismado.
Ou se fosse que algum perigo se produzia por ali, e eu colhia o aviso? Não é que, com muitos, dose disso sucedesse? Eu sabia, tinha ouvido falar: jagunços que pegam esse condão, adivinham o invento de qualquer sobrevir, por isso em boa hora escapam. O Hermógenes. João Goanhá, mais do que todos, era atreito a esses palpites de fino ar, coraçãoados. Atual isso comigo? Que os bebelos rodeavam para ali, quem sabe perto já rastejavam. Zé Bebelo mandava neles. Em todos o momentos, em Zé Bebelo sempre pensei, e em como a vida é cheia de passagens emendadas. Eu, na Nhanva, ensinando lição a ele, ditado e leitura, as contas de juros; depois, de noite, na sala grande, na mesa grande, se comia canjica temperada com leite,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas queijo, coco-da-baía, amendoim, açúcar, canela e manteiga-de-vaca. – “Fofo faço, e em prazo, siô Baldo: acabar para uma vez com essa cambada canalha de jagunços!” – ele referia, com rompante e festa no dizer, bebendo seu coité de chá-de-congonha, que de tão quente pelava. Então, agora, era eu também – Zé Bebelo vinha de lá, comandando armas de esqua-drões, e o que ele tinha jurado, naquela ocasião, ficava sendo também de acabar comigo, com minha vida. Mas eu prezava Zé Bebelo, minha simpatia é uma só, dada definitiva às altas, sempre fui assim. Sendo que não fosse ele em sua pessoa, se ele no meio não estivesse, tudo tinha outra ordem: eu podia pôr meu afinco o
– farto destravado, no querer combater. Mas, brigar, cruzando morte, com Zé Bebelo, eu vi que era isso que me dava uma re-pugnância, em minha inteligência. Levantei da rede, e convidei Jõe Bexiguento para se botar mais lenha no fogo. Ele disse: –
“Convém não. Ocasiões assim, convém acender nem vela de cera preta...” Enrolei um cigarro.
Contei ao Jõe o que eu estava sentindo estúrdio; se não era agouramento? E ele me apaziguou: que anjo aviso não vinha desse jeito, antes era uma certeza que minava fininha, de dentro da idéia da gente, sem razoado nem discussão. O que eu purgava era ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas tiroteio. – “Comigo, assim, depois de cada forte fogo, me dá esse porém. É uma coceira na mente, comparando mal. Faz regular uns seis anos, que estou na jagunçagem, medo de guerra não conheço; mas, na noite, passado cada fogo, não me livro disso, essa desinquietação me vem...”
Pela causa, me disse, era que ele não vencia dormir nem um pisco, naquela comprida noite, e nem experimentava. Jõe Bexiguento achava que não tinha mais sustância para ser jagunço; duns meses, disse, andava padecendo da saúde, erisipelava e asmava. – “Cedo aprendi a viver sozinho. P’ra o Riachão vou, derrubo lá um bom mato...” Era o projeto em tal, que ele formava vez em quando. – “Trabalhar de amassar as mãos... Que isso é que sertanejo pode, mesmo na barra da velhice...”
– “Você era amigo do Garanço, Jõe?” – em manso perguntei. – “Assim, o dito, pela rama. Que foi com ele? Deu o fim, mesmo, legal? Acho que esse sempre se esteve meio caipora... Ele mesmo sabia que era...” Ainda ouvindo as palavras, conheci que tinha perguntado pelo Garanço só para depois perguntar por Diadorim, digo: o Reinaldo. Mas outra coragem não tive. Faltou razão para mim. Que desconversei: – “Caipora se cura, Jõe? Você sabe rezas fortes?” – por aí devo que indaguei;
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas bobéia minha, assunto. – “A que cujo, se caipora não curasse?
Todo o mundo dela tem, nos tempos...” – ele me repositou. – “...
Mas desses ensalmos quis aprender não. Memória que Deus me deu não foi para palavrear avesso nele, com feitas ofensas...”
Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente.
– “Uai?! Nós vive...” – foi o respondido que ele me deu.
Mas eu não quis aquilo. Não aceitei. Questionei com ele, duvidando, rejeitando. Porque eu estava sem sono, sem sede, sem fome, sem querer nenhum, sem paciência de estimar um bom companheiro. Nem o ouro do corpo eu não quisesse, aquela hora não merecia: brancura rosada de uma moça, depois do antes da lua-de-mel. Discuti alto. Um, que estava com sua rede ali a próximo, de certo acordou com meu vozeio, e xingou xiu. Baixei, mas fui ponteando opostos. Que isso foi o que
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...
Mas Jõe Bexiguento não se importava. Duro homem jagunço, como ele no cerne era, a idéia dele era curta, não variava. – “Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio...” – ele falasse. Tudo poitava simples. Então – eu pensei – por que era que eu também não podia ser assim, como o Jõe? Porque, veja o senhor o que eu vi: para o Jõe Bexiguento, no sentir da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste mundo – as coisas eram bem divididas, separadas. – “De Deus?
Do demo?” – foi o respondido por ele – “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta... Quem é que pode ir divulgar o corisco de raio do borro da chuva, no grosso das nuvens altas?” E por aí eu mesmo mais acalmado ri, me ri, ele era engraçado. Naquele tempo, também, eu não tinha tanto o estrito e precisão, nestes assuntos. E o Jõe contava casos. Contou. Caso que se passou no sertão jequitinhão, no arraial de São João Leão,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.
Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada.
Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.
Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola – se dizia – só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bem-criados e bonitinhos, eram “os meninos da Maria do Padre”. E
em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santos-óleos.
Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.
E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.
Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado