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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas escorresse como pudesse, ou dependesse na faca: atirar com arma é que não podendo. Sendo que podendo, mas só depois do Hermógenes – que era quem era o dono: – o primeiro tiro ele dava. Como cada qual tinha de atirar com sangue-frio, de matar exato. Porque nosso prazo seria acabar com todos, com brevidade; mais antes que outros deles pudessem vir, para um reforço. Mesmo assim, Titão Passos ia com uns trinta companheiros reguardar o caminho de vinda, à emboscada, num tombador de pedra. Já vai que o Hermógenes explicava, devagar, e tudo repetia, com paciência: o dever absoluto era que até o mais tonto aprendesse, e estava definido o rumo de tarefa por onde cada um devia de se pôr no chão e começar a engatinhar, virada arriba. Mas, eu, catei o sentido de tudo já na primeira razão, e, de cada vez que ele repetia, eu reproduzia – em minha idéia os acontecimentos se passando, eu já estava lá, e rastejava, me aprontava. Peguei a sentir. Me fiz fácil nas armas.

Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O

Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem.

Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro.

Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!”

Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.

Aí, ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos. Eu? Ele estava me experimentando? E não tardei: – “O Garanço...” – eu disse. – “... e este, aqui!” – completei, para aquele montesclarense apontando. Bem que eu queria também o Feijó; mas deviam de ser só dois, a conta já estava. E Diadorim? – o senhor perguntará. Ah, por Diadorim era que eu não dizia, o pensamento nele me repassava. O tempozinho todo, naquele soflagrante. E estúrdio: eu principalmente não queria Diadorim perto de mim, para as horas. Por quê? Por que, é o que eu mesmo não sabia. Seria que me desvalesse a presença dele comigo, pelos perigos que eu visse virem a ele, no meio do combate; ou seria que a lembrança de ter Diadorim junto, naquilo, me desgostasse, por me enfraquecer, agora eu assim, duro ferro diante do Hermógenes, leão coração? Se sei, sei. Porque era como eu estava. E assim respondi: que então o Garanço e o Montesclarense iam com a gente.

Como saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aos três, aos sozinhos. Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma asada,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas uma pancada só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos. Conto tudo ao senhor. O caminhar da gente se media em silencioso, nem o das alpercatas não se ouvia. De tantos matos baixos, carrascal, o chio dos bichinhos era um milhão só. Por lá a coruja grande avoa, que sabe bem aonde vai, sabe sem barulho. A quando o vulto dela assombrava em frente da gente no ar, eu fechava os olhos três vezes. O Hermógenes rompia adiante, não dizia palavra. Nem o Garanço também, nem o Montesclarense.

Isso, em meu sentir, eu a eles agradecia. Quem vai morrer e matar, pode ter conversa? Só esses pássaros de pena mole, gerados da noite – tantos bacuraus insensatos: o sebastião que chamava a fêmea, com grandes risadas, pedindo tabaco-bom.

Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Só esforçava tenção numa coisa: que era que devia de guardar tenência simples e constância miúda, esperando a novidade de cada momento.

Minha pessoa tomava para mim um valor enorme. Aquele pássaro mede-léguas erguia vôo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de comum esses fazem. Bobice dele – não via que o perigo torna a vir, sempre?

Digo tudo, disse: matar-e-morrer? Toleima. Nisso mesmo era que eu não pensava. Descarecia. Era assim: eu ia indo,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas cumprindo ordens; tinha de chegar num lugar, aperrar as armas; acontecia o seguinte, o que viesse vinha; tudo não é sina? Nanja não queria me alembrar, de nenhum, nenhuma. Com meia-légua andada, por um trilho. É preciso não roçar forte nas ramagens, não partir galhos. Caminhar de noite, no breu, se jura sabença: o que preza o chão – o pé que adivinha. A gente imagina uns buracões disformes. A gente espera vozes. Eh. Pouquinhas estrelas dando céu; a noite barrava bruta. Digo ao senhor: a noite é da morte? Nada pega significado, em certas horas. Saiba o que eu mais pensei. No seguinte: como é que curiango canta. Que o curiango canta é: Curí-angú!

A obra de umas cem braças do riacho, o Hermógenes esbarrou. Con chegamos. E com as mãos apalpávamos uns os outros. Dali em diante, era junto a junto. O Hermógenes, puxando, enxergava por nós. Que olhos, que esse, descascavam de dentro do escuro qualquer coisa, olhar assim, que nem o de suindara. Cada um com punhal a ponto, atravessamos o córrego, pulando pelas alpondras; mais para baixo, sabíamos de uma estiva, mas lá se temia que tivessem botado sentinelas. Ali era o lugar pior: um estremecimento me desceu, senti o espaço da minha nuca. Do escurão, tudo é mesmo possível. No outro lado, o Hermógenes sussurrou ordens. Deitamos. Eu estava atrás

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas duma árvore, uma almêcega. Mais atrás de mim, o riacho, passante por suas pedras. Naquela espera, carecíamos de persistir horas, dando tempo. Assim, a água perto, os mosquitos vêm, eles acordam com o cheiro da cara da gente, não concedem sossego.

Acender cigarro e pitar, não se podia. A noite é uma grande demora. Ah o que os mosquitos infernizavam. Por isso mesmo, direi, era que Hermógenes tinha escolhido ali: que ninguém pegasse no sono, que a mosquitada não deixava? Mas não seria de mim que pudesse ferrar no sono assim perto daquele homem, príncipe das tantas maldades. O que eu queria era que tudo sucedesse, mal ou bem aquela noite tivesse termo de terminada. –

“Tá aqui, toma...” – ouvi. Era o Hermógenes, um taco de fumo me dando, que em forte cachaça ele tinha acabado de empapar.

Era para se esfregar na cara e nas mãos. Aceitei. Fosse coisa de comer, não aceitava. Nada não disse, não agradeci. Aquilo era do serviço de armas, fazia parte. E esfreguei, bem. Ao que os mosquitos deixaram de me ferroar. Desde fiquei, pois então, me divertindo de beliscar a casca da almêcega, aquela resina de ici-í.

Daí, os pensamentos que tive foram os que nem merecem, e eu não sou capaz de dar narração: retrato de pessoas diversas, ressalte de conversas tolas, coisas em vago das viagens que eu tinha feito. A noite durava.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Haja de contar o que foi – o todo de se escorregar para cima a encosta – até ao ponto, donde a espera de tocaia devia de ser? Aquilo o igual, sempre sendo. Um homem se arraiga em terra, no capim, no chão, e vai, vai – sendo serepente – de gato-em-caça. Carece de repartir frouxo o peso do corpo, semelhante fosse nadando; cotovelo e joelho é que transpõem. Tudo um ai de vagar, que chega aporreia, tem que ser. Não vale arranco de pressa, o senhor tem de ficar o comprido que pode, por mais de.

As juntas da gente estalam, o senhor mesmo escuta. Se coça a canela com o calcanhar; – estando com polaina não adianta. De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta.

Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso.

O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Às guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo dele.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com gosto – que é o que mais defende d’ele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro de terra agoura mal. Capim de beira em fio, que corta a cara. E uns gafanhotos pulam, têm um estourinho, tlique, eu figurava que era das estrelas remexidas, titique delas, caindo por minhas costas.

Trabalhos de unha. O capim escorria, do sereno da noite, lagrimado. Ah, e cobra? Pensar que, num corisco de momento, se pode premer mão numa rodilha grossa de cascavel, numa certa morte dessas. Pior é a surucucu, que passeia longe, noturnazã, monstro: essa é o que há com mais doida ligeireza neste mundo.

Rezei a jaculatória de São Bento. A água do sereno me molhava, da macega, das folhas, – é o que digo ao senhor; me desgostava.

Raio de um repente, afastaram a erva alta, minha cabeça eu encolhi. Era um tatu, que ia entrando no buraco, fungou e escutei o esfrego de suas muxibas. Tatu-peba, e eu no rés dele. Que modo quê? Rastejando de minha banda da direita, o Hermógenes rompia, eu sentia o bafo duma boca, e aquele avultar deitado de bicho duro, braço por braço. O Garanço e o Montesclarense espigavam vez mais adiante, vez mais atrás. Quando de sem-

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas menos, o Hermógenes me esbarrou. Ele falou um murmo – me cochichou de mão em concha. – “É aqui mesmo...” – ele redisse.

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