Eu tinha dó de Diadorim, eu ia com meu pensamento para Otacília. Me balanceei assim, adiantado na noite, em tanto gaio, em tanto piongo, com todas as novas dúvidas e idéias, e esperanças, no claro de uma espertina. Com muito, me levantei.
Saí. Tomei a altura do sete-estrelo. Mas a lua subia estada, abençoando redondo o friinho de maio. Era da borda-do-campo que a mãe-da-lua sofria seu cujo de canto, do vulto de árvores da mata cercã. Quando a lua subisse mais, as estrelas se sumiam para dentro, e até as seriemas podiam se atontar de gritar. Ao que fiquei bom tempo encostado no cajueiro da beira do curral. Só olhava para a frente da casa-da-fazenda, imaginando Otacília deitada, rezada, feito uma gatazinha branca, no cavo dos lençóis lavados e soltos, ela devia de sonhar assim. E, de repente, pressenti que alguém tinha vindo por detrás de mim, me vigiava.
Diadorim, fosse? Não virei a cara para ver. Não tive receio.
Nunca posso ter medo das pessoas de quem eu gosto. Digo.
Esperei mais, outro tempo. Daí, vim voltando. Mas lá não estava pessoa nenhuma, entre claridade e sombras. Ilusão minha, a fantasiação. Bebi água do rego, com o frio da noite ela corria morna. Tornei a entrar na rebaixa. Diadorim permanecia lá, jogado de dormir. De perto, senti a respiração dele, remissa e
– 271 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas delicada. Eu aí gostava dele. Não fosse um, como eu, disse a Deus que esse ente eu abraçava e beijava. E, com o vago, devo de ter adormecido – porque acordei quando Diadorim no mexe leve se levantou, saiu sem rumor, levando a capanga, ia tomar seu banho em poço de córrego, das barras no clarear. Desde o que, depressa eu tornei a me dormir.
Mas, cedo no amanhecer, o sor Amadeu tinha chegado, e com notícia urgente: que o grosso do bando de Medeiro Vaz recruzava, de lá a quinze léguas, da Vereda-Funda para a Ratragagem, e nós tínhamos de seguir, sem folga, supraditamente. No que Nhô Vô Anselmo me deu um dito afeiçoado e diferente – entendi que o velhozinho sabia de alguma coisa, e que não desgostava que eu viesse a ficar neto dele. Nós almoçamos e montamos. Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro se retiraram em adiantando, e o Fafafa. Mas eu cacei melhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha, disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse vir com jus. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-doverde no coração. Por breve – pensei – era que eu me despedia daquela abençoada fazenda Santa Catarina, excelentes produções. Não que eu acendesse em mim ambição de teres e
– 272 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas haveres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de amor.
Mas, com um significado de paz, de amizade de todos, de sossegadas boas regras, eu pensava: nas rezas, nas roupagens, na festa, na mesa grande com comedorias e doces; e, no meio do solene, o sor Amadeu, pai dela, que apartasse – destinado para nós dois – um buritizal em dote, conforme o uso dos antigos.
Vim. Diadorim nada não me disse. A poeira das estradas pegava pesada de orvalho. O birro e o jesus-meu-deus cantavam.
O melosal maduro alto, com toda sua roxidão, roxura. Mas, o mais, e do que sei, eram mesmo meus fortes pensamentos.
Sentimento preso. Otacília. Por que eu não podia ficar lá, desde vez? Por que era que eu precisava de ir por adiante, com Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus? Destino preso. Diadorim e eu viemos, vim; de rota abatida. Mas, desse dia desde, sempre uma parte de mim ficou lá, com Otacília. Destino. Pensava nela. Às vezes menos, às vezes mais, consoante é da vida. Às vezes me esquecia, às vezes me lembrava. Foram esses meses, foram anos. Mas Diadorim, por onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria.
– 273 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha história. O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa.
Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto. Como eu estava, com o senhor, no meio dos Hermógenes.
Destaque feito: Zé Bebelo vinha vindo. Vinham por nós.
E tivemos notícia: a légua dali, eles estavam chegando, no meio do dia, patrulhão de cavaleiros. Légua, não era verdade – mas, obra de seis léguas, o sim. E eram só uns sessenta, por aí. Todo o tempo eu vinha sabendo que nosso fim era esse, mas mesmo assim foi feito surpresa. Eu não podia imaginar que ia entrar em fogo contra os bebelos. De certo modo, eu prezava Zé Bebelo como amigo. Respeitava a finura dele – Zé Bebelo: sempre entendidamente. E uma coisa me esmoreceu a torto. Medo, não, mas perdi a vontade de ter coragem. Mudamos de acampo, para perto, para perto. – “É agora! É hoje!...” O Hermógenes reunia o pessoal, todos. A gente carecia de levar o préstimo maior de
– 274 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas munição, que se pudesse. Aonde? Diadorim, por um gesto, me cortou de fazer mais perguntas. Às armas. Diadorim ia, para aquilo, prezável de passeata. Ah, uma coisa não referi ao senhor.
Que era que, aquele tempo, no arranchamento do Hermógenes, minha amizade com Diadorim estava sendo feito água que corre em pedra, sem pepa de barro nem pó de turvação. Da voz de homens e do tinir de armas em má véspera, não se podia deixar de receber um lufo de dureza, de mais próprio respeito, e muita coisinha se empequenava. – “Zé Bebelo é arisco de aviso, Diadorim... Ele joga seguro: por aí perto, em esconso, deve de ter outra tropa de guerra, prontos para virem dar retaguarda. Eu sei bem – essa a norma dele... Carece de prevenir o Hermógenes, João Goanhá, Titão Passos...” – eu não retive, e disse. – “Eles sabem, Riobaldo. Toda guerra é essa...” –
Diadorim me respondeu. E eu estava sabendo que eu já dizer aquilp era traição. Era? Hoje eu sei que não, que eu tinha de zelar por vida e pela dos companheiros. Mas era, traição, isto também sim: era, porque eu pensava que era. Agora, depois mais do tudo que houve, não foi?
Agarrei minha mochila, comi fria a minha jacuba. Tudo estava sendo determinado decidido, até o que a gente tinha de fazer depois. Aí João Goanhá apartava o pessoal em punhados
– 275 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de quinze ou vinte: cada um desses, acabado o fogo, devia de se reunir em lugar certo comum. Daquela hora em diante, íamos ter de brigar em pequenas quantidades. Pelas caras dos homens, eu via que estavam satisfeitos, parecia muito e pouco. Com regozijo, um golinho se bebeu. – “Toma este breve, Riobaldo. Foi minha mãe-de-criação quem costurou para mim. Mas eu carrego dois...”
Era o Feijó, um sacudido oitavão, ele manobrava rifle de três canos. Que simpatia demonstrada era essa, eu nunca tinha dado fé daquele Feijó? – “A vamos. Hoje se faz o que não se faz...” –
um se exaltava assim, tive medo de castigo de Deus. Quem quisesse rezar, podia, tinha praça; outros, contritos, acompanhavam. Outros ainda comiam, zampando, limpavam a boca com as duas mãos. – “Não é medo não, amigos, é o trivial do corpo!” – explicavam alguns, que ainda careciam de ir por suas necessidades. Restantes risadas davam. Ao que faltava nem meia-hora para o sol ir entrando. Daquele lugar, vazio de moradas e de terras lavradias, a gente ouvia o gugo da juriti como um chamado acabado, junto com lobo guará já dando gritos de penitência. – “Presta uma demão, aqui...” Ajudei. Era um montesclarense – acho que o cujo nome esqueci – que queria passar tiras de pano, por sola das alpercatas e peito dos pés, reforçando.
Terminou, e fez os passos de dança, maneiro nas juntas,
– 276 –
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas assobiava. Aquele rapaz pensava alguma coisa? – “Riobaldo?” –
Diadorim me disse – “arruma jeito de mudar de lugar, na hora, sempre que puder. E põe cautela: homem rasteja por entre as moitas, e vem pular nas costas da gente, relampeando faca.”
Diadorim sorria sério. Um outro me esbarrou, quando passava.
Era o Delfim, violeiro. Onde era que a viola ele ia poder guardar?
Eu apertei a mão de Diadorim, e queria sair, andar, gastar.
Conto que chegou o Hermógenes. A voz do Hermógenes, dando ordens de guerra – já disse ao senhor? – ficava clara e correta; um podia dizer: que até ficava. Ao menos ele sabia aonde ia levar a gente, e o que queria. Deu resumo do traço.
Que todos cumprissem, que todos soubessem! A partida dos zebebelos estava com posição no Alto dos Angicos –
tabuleirinho de chã. Podiam ter espalhado sentinelas muito longe, até na beira do córrego Dinho, ou para lá, em volta, nas contravertentes. Mas, disso, logo se ia saber, porqual os espias nossos rondavam. O que se tinha era de chegar, já como o escuro, e engatinhar às ladeiras, no durado da noite, na arte vagarosa. Só íamos abrir fogo, de surpresa, no clarearzinho da madrugada. Cada um de seu Ponto melhor. Tudo tinha de valer Pm cnnsagato e finice, até se carecia de respirar só por metade.
Se algum topasse com inimigos, por má-sorte, antes, ele que
– 277 –