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branco é . branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade. Noitezinha, viemos. Primeira coruja que a ãoar, eu era capaz de acertar nela um tiro.

Mas Só Candelário não era tolo nas meças. No outro dia, notícias tivemos. E que! Dali a lá, as notícias todas andaram de vir, em lote e réstia. Um Sucivre, que fino chegou, esgalopado.

Disse: – “Nhô Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado. Titão Passos pegou trinta e tantos deles, num bom combate, no esporão da serra...” Os bebelos se desabelhavam zuretas, debaixo de fatos machos e zuo de balas. A tanto, a gente em festa se alegrava Só Candelário subiu no jirau de varas-que tinha

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas mandado fazer, nele era que dormia sem repousar – e assim espiou esquecido tempo, espiava as paradas distâncias, feito um gavião querendo partir em vôo. Agora, era a guerra, mesmo, estariam rompendo as aleluias, lá por lá. Donde, daí, veio o Adalgizo: – “Seô Hermógenes passou, obra de seis léguas, vai dar combate...” Nossa hora de fogo estava perto. Assim os bebelos tinham de passar de fugida por ali no É-Já, resvés. Só Candelário chega exclamava, chorava: dizia que nunca tinha chefiado pessoal tão valente feito nós, com tantas capacidades.

E queria, logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horas tocaiadas; e de noite com um olho só se ia dormir, que das armas não se largava. A redobrar as sentinelas, em ave-marias e alvorada.

Combate vem é feito raio cai. Tudo era alarme dado, cuquiada: um pontapé em tição, o punhado de terra jogado para apagar as fogueiras, de repente, e se assobiava cruzado. Vez, deram até tiros: mas nada não era, só um boi loango, com muita fome e pouco sono, que veio sozinho pastando e deu a cara comprida, ali foras d’hora, no capinzal bom. – “Tudo que é estúrdio comparece em tempo de guerra... Vote, vais!” – algum disse. E

teve gente que se riu disso, até à beira da madrugada. Daquilo tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar graça no dessossego. Aprendi a medir a noite em meus dedos.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aos goles, dormida com a gente encostado em coronha de sua arma. O que carece é acompanheiragem de todos no simples, assim irmãos.

Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava.

Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem. Só Candelário era o chefe ao meu gosto, como eu imaginava. Ah, e Joca Ramiro?

Antes foi uma coisa acontecida repentina: aquele alvoroço, na cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro! –

“Doca Ramiro!” – se gritava. Só Candelário pulou em sela, assim como ele sempre era: mola de aço. Deu um galope, em encontro. Nós todos, de começo, ficamos atarantados. Vi um sol de alegria tanta, nos olhos de Diadorim, até me apoquentou.

Eu tinha ciúme? – “Riobaldo, tu vai ver como ele é!” –

Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia uma criança pequena, naquela bela resumida satisfação. Como era que eu ia poder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a toda cavaleirama chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manos-velhos baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas saudavam. E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco – cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos.

Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados?

O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do serão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.

Sobre o no meio daquele rebuliço, menos colhi de ver e de escutar. Os chefes tinham apeado dos cavalos, e os homens, todos, em balbúrdia com sensatez. Só Candelário não arredava pé de Joca Ramiro, e explicava as diversas coisas, com grandes gestos, quase ele não dava conta de se falar. A demora era pouca. Aí o forte bando tinha de se aluir para adiante, em redobro de marcha – iam para ferrar fogo, em lugar e hora determinados – semelhante se soube. Tempo de beberem um café. Mas Joca Ramiro veio de lá, em alargados vagarosos

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas passos, queria correr o acampamento, saudar um e outro, a palavrinha que fosse, um dito de apreço e apraz. O andar dele-vi certo: alteado e imponente, como o de ninguém. Diadorim olhava; e também tinha lágrimas vindo por caso. Decidido, deu um à-frente, pegou a mão de Joca Ramiro, beijou. Joca Ramiro, que firme contemplando, só um instante, seja, mas o docemente achável, com um calor diferente de amizade. A quantia que ele gostava de Diadorim! – e pousou nas costas dele um abraço. Ao que, se virou para nós, que estávamos. E eu fiz como Diadorim

– nem sei porquê: peguei a mão daquele homem, beijei também.

Todos, os que eram mais moços, beijavam. Os mais velhos tinham vergonha de beijar. – “Este aqui é o Riobaldo, o senhor sabe? Meu amigo. A alcunha que alguns dizem é Tatarana...”

Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, fraseou: “Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as marcas de conciso valente. Riobaldo... Riobaldo...” Disse mais: –

“Espera. Acho que tenho um trem, para você...” Mandou vir o dito, e um cabra chamado João Frio foi lá nos cargueiros, e trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de cavalaria.

Com aquilo, Joca Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor: minha satisfação não teve beiras. Pudessem afiar inveja em mim, pudessem. Diadorim me olhava, com um contentamento. Me

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas chamou de lado. Vi que, mesmo sendo assim querido e escolhido de Joca Ramiro, ele procedia mais de ficar de longe, por ninguém se queixar, não acharem que ali havia afilhadagem. –

“Não é que ele é mesmo o chefe de todos? Não é que é mandante?” – Diadorim me perguntava. Era. Mas eu não percebi o vivo do tempo que passava. Eles já estavam indo de saída. Montado no cavale branco, Joca Ramiro deu uma despedida. Vi que ele com os olhos caçou Diadorim. Só Candelário gritou: – “Viva Jesus, em rotas e vantagens!” E, num bufúrdio, todos esporaram, andaram, ao assaz. A alta poeira, que demorava. Aquilo parecia uma música tocando.

Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas armas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o fim da guerra! – “Só Candelário queria ir também, mas teve de aceitar ordem de ficar...” – Diadorim me explicou. Segundo disse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas. Diadorim e eu

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas fizemos parte duma turma dessas, duns quinze homens, chefia de João Curiol – fomos para a baixa dos Umbuzeiros, lugar feio, com os gravatás poeirentos e uns levantados de pedra. Partindo desse vau, a gente pega uma chapadinha – a Chapada-da-Seriema-Correndo. A que parecia mesmo de propósito. Porque foi lá, com todo o efeito, que a cara da caça se apareceu. Aquilo, terrível. Conto já ao senhor, duma vez.

Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio.

Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera: dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é. Tão de repente.

O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas que o galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles eram uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se esguichou farta, vero bonito aquilo no sol. Demos fogo.

Do que podia suceder. Vi homem despencado demais, os cavalos patatrás! Dada a desordem. Só cavalo sozinho podia fugir, mas os homens no chão, no cata, cata. Ao que, a gente atirava! Se morria, se matava, matava? Os cavalos, não. Mas teve um, veio, à de se doidar, se espinoteava, o cavaleiro não agüentava na rédea, chegaram até perto de nós, aí todos os dois morreram de repente. Meu senhor: tudo numa estraga

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas extraordinária. Mas aqueles eram homens! Trampe logo que puderam, os sobrantes deles se desapearam e rastejaram, respondendo ao fogo. Ah, puderam tomar oculto atrás de outras fragas de pedra, nisso a gente não conseguiu ter mão. Ainda deviam de ser uns dez, ou uns oito. Afa que gritavam, em febre de ódio, xingando todo nome. A gente, também. Anhãnhãe, berrávamos fogo, quando sinal de homem tremeluzia. As balas rachavam as pedras, só partiam escalhas. Um se mostrou, caiu logo. Munição deles era pouca. Fugir, mesmo, não podiam. A gente atirava. Aí deviam de ser uns seis – que é a meia-dúzia. –

“Aoê, sabe quem está lá, comandando?” – o rastejador Roque me disse. – “Sabe quem?” Ah, eu sabia. Eu tinha sabido, o em desde o primeiro momento. Era quem eu não queria para ser.

Era Zé Bebelo!

Assim eu condenado para matar.

Aqui eu não sei o que o senhor não sabe. – “A fogo! A crevo!” – isto João Curiol gritava. Antes do depois, neles a gente ia ir a pano de facão. – “Tralha! Lá vai obra, cão, carujo!

Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu não gritei.

Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase nenhuma. Eles deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas meu rifle esquentava demais. – “Roncolho! Toma...” Um Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de Zé Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo – que. eu menos atirava do que pensava.

Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele, tudo que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre – Zé Bebelo – a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava?

Arresto gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo! loca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...” A que nem não sei como tive o repente de isso dizer – falso, verdadeiro, inventado...

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