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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas arrumado no chão o bissaco e o cobertor, estava sem jaleco, só com a camisa de xadrezim. Eu vi o suor minar em mancha, na camisa, no meio das costas dele, Garanço, aquela nódoa escura ia crescendo, arredondada, alargada. O Garanço disparava, sacudia o corpo, ele era amigo meu, com minúcia de valentia.

Rapaz de como se querer, homem de leal qualidade. Então, eu atirava, também. “Bala e chumbo...” – eu peguei a dizer. “Bala e chumbo... Bala e chumbo...” O lugar do coração me apertando

– eu era carne muita e calor bravo – “O que foi? Que é?” – o Hermógenes me perguntou. – “Nada não!” – respondi. “Bala e chumbo... Chumbo e bala...” Estrumes! Pelo que foi, de repente: bem apartado, da banda esquerda de nós, uns homens dos nossos deram figura, se pulando para diante, aos gritos, investiram – contra o contra!

Ao que, eram dois... Três... – “Diá!” – o Hermógenes rosnou: – “Deu a fúria nesses, bute!” Raspa que eles por lá entraram, iam de coronhada e faca... Não se atirou, suspendemos fôlego. E, vai, o Hermógenes me segurou tente: que o Montesclarense – coitado! – também tinha crescido para avante, no igual, e, de lá, nele balearam. Caiu, catando cacos. Pobre. Deu doidice? Antes aí, os outros nossos, que se danando no vespeiro dos bebelos, roncavam em poeira deles, decerto se acabavam

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estraçalhados que nem coelho com a cainça. Tomara tivessem aprontado seus alguns! Assim aquilo sossegou, povo nosso demos raiva de fogo – aí é que foi atirar. O Hermógenes me resignou os ímpetos: – “Tatarana, te trava, não dá de esquentar arma, gasta munição não. Só os tiros bons poucos. Só cobrar o dizmo.” Aquele homem fazia frio, feito caramujo de sombra. A ver que tive sede, mas minha cabaça não dava gota mais. Guardei meu cuspe.

Aquilo não ia ter pique de ponto, guerra que não se sabe terminar? Assunto que apostaram os mil tiros para cima de nossa redondez de lugar, esses assoviaços. Triplavam. No ferrenho, tive um tempo de coisa, espécie de mais medo, o que um não confessa: vara verde, ver. Mas, morresse, eu descansava.

Descansava de todo desânimo. Andando que aquele ataque nosso não servia para resultado nenhum, e eu carecia de avistar os outros, saber de qualquer contagem de balanço, de quantos tinham morrido ou estavam mal. Eu queria saber, dos deles e dos nossos. Combate sem cabimento! Só o tiroteio, repetido reproduzido. Meio peguei um pensamento: se o Hermógenes sungasse raiva, se o Ele desse nele, por um vir? Que mandasse avançasse, a fino de faca, nós todos tínhamos de avançar? Então, eu estava ali era feito um escravo de morte, sem querer meu, no

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas puto de homem, no danadório! E eu não podia virar só o corpo um pouco, abocar minha arma nele Hermógenes, desfechar?

Podia não, logo senti. Tem um ponto de marca, que dele não se pode mais voltar para trás. Tudo tinha me torcido para um rumo só, minha coragem regulada somente para diante, somente para diante; e o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado –

era feito fosse eu mesmo. Ah, e toda hora ele estavas sempre estava. Que me disse: – “Tatarana, toma, come, e agradece ao corpo um poucado...” Há-de que estava me oferecendo a capanga, paçoca de carnes.

Tanto que os tiros tinham esbarrado quase em completo, em partes. Eu, tendo comida minha, de matula, no bornal. Aí, e munição minha de balas, no surrão. Eu carecia lá do Hermógenes? Mas, por que foi então que aceitei, que mastiguei daquela carne, nem fome acho que não tinha direito, engoli daquela farinha? E pedi água. – “Mano velho, bebe, que esta é competente...” – ele riu. O que estava me dando, na cabacinha, era água com cachaça. Bebi. Limpei os beiços. Escorei o cano do rifle, num duro de moita. Eu olhava aquele bom suor, nas costas do Garanço. Ele atirava. Eu atirava. A vida era assim mesmo, coração quejando. Até me caceteou uma lombeira.

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas E, daí, deu-se. Da banda de longe – lá pelo tombador de pedra, onde nossa gente com Titão Passos estavam escondidos para a esparrela – foi um tirotear forte, fogo por salvas. Ah, então era outra partida de zé-bebelos que deviam de estar chegando, drongo deles, cavaleiros. O Hermógenes esticou o pescoço, rijo ouvindo. Soante que atiravam, sucedidos, o tiroteio foi mudando de feição. – “Tou gostando não...” – o que o Hermógenes disse. Mais disse: – “O diabo deu em erro...”

Homem atilado, cachorral. – “Seja que sabidos vieram, eh, pressentiram! Sei se, por ora, o trabalho está desandado...” Aí, eu estava escutando. Eu olhei. Olhava para as costas do Garanço, ela, a mancha, estava ficando de outra cor... O suor vermelho... Era sangue! Sangue que empapava as costas do Garanço – e eu entendi demais aquilo. O Garanço parado quieto, sempre empinado com a frente do corpo, semelhando que o cupim ele tivesse abraçado. A morte é corisco que sempre já veio. Ânsias, ao em que bola me vinha goela arriba, do arrocho grosso, imposto, que às vezes em lágrimas nos olhos se transforma. A bobagem...

– “Tu, Tatarana, Riobaldo: agora é a má hora!” – era o Hermógenes prevenindo. – “Demo!” – eu repontei. Mas ele não entendeu minha soltura. Soprou: – “A muita cautela. Temos,

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas que se foge em boa ordem: os que estão chegando vêm rodear a gente, vão dar retaguarda.” E era. Como que esse maldito tudo sabia, adivinhava o seguinte vivo das coisas, esse Hermógenes, trapaças! Mas ainda me prezei: quem é que me segurava de ir?! –

rastejei de esquinado, os metros, em afogo, carecia de ver se o Garanço podia ter ajuda. – “A p’a trás, mano. Te cuida!” – ouvi o rispe do Hermógenes – que eu não me desgraçasse. Mas não se deixa um cristão amigo deitar seu sangue no capim das moitas, feito um traste roto, caititu caçado. Peguei, com meus braços: não adiantava – era corpo. Ele estava defunto de não fechar boca – aí, defunto airado. Todo vejo, o sangue dele a mofos cheirasse. Anda que vinham vôo os mosquitos chupadores, e mosca-verde que se ousou, sem o zumbo frisso, perto no ar. Porque os tiros. E nem um momento de vela acesa o Garanço não ia poder ter. – “Vem, tu vem, que estamos no amém estreitos!” – que, enfezado, o Hermógenes chamou. Dei para trás. O perigo saca toda tristeza. E a vez era esta: que o Hermógenes encheu os peitos, e soltou um rinchado zurro, dos de jumento velho em beira de campo. Três tantos. Ele estava dando a retirada. Por outros lados, mais longe, outros o mesmo onco-e-rincho copiavam. – “Arre, fogo, agora, forte fogo!” – o Hermógenes me mandou. Atirei. Atiramos, teúdo. Ao que os

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas companheiros todos atiravam. Assaz à retirada se estava rinchando, mas os inimigos não sabiam: carecia que eles pensassem que a gente ia dar um ataque final. Acharam? E sei.

A bala com bala ripostavam. Mas, nós, nesse entrequanto, rompemos o arvoredo, aqui e ali, rojamos para baixo, embora, mesmo. Desunir, assim, verga pior do que avançar. A lanço a lanço, fui, pulei, nos abertos entre árvores, acompanhei o Hermógenes. Aí, eu já estava para lá dele; mas virei e esperei.

Porque, na desordem de mente do alvoroço, aquela hora era só no Hermógenes que eu via salvamento, para meu cão de corpo.

Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também. Vim. Ainda divulguei, nas sofraldas descentes, homens que corriam, meus iguais, às vezes se subiam do bamburral baixo, feito acãoada codorniz. Viemos. Repassamos o corguinho do Dinho, beiramos uma ipueira. Entramos no cerrado. – “Tu tem tudo, Tatarana? Munição, as armas?” – o Hermógenes me indagou. – “Tenho, se tenho!” – eu respondi, bem. E ele para mim: – “Então, está certo...” Agora ele falasse grosseado, com modo de chefe e mando, era assim. E fomos para cinco léguas, entre o norte e o poente, no Cansanção, lugar aonde um punhado dos da gente devia de se engrupar. Para lá fomos, de rastros apagados. Caminhamos prazo dentro de

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas riacho, depois escolhemos para pisar pedras, de nosso pisado com ramos as marcas desmanchamos, e o mais do caminho se seguiu por muitos diversos rodeios.

De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então, careço de que o senhor escute bem essas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja!

E dizendo vou. No mais, que quando se alcançou o nosso bom esconder, num boqueirãozinho, já achamos companheiros outros, diversos, vindos de armas, e que chegavam separadamente, naquela satisfação de vida salva. Um era o Feijó.

Será, se tinha avistado o Reinaldo sem perigo? A meio perguntei. Por causa que só em Diadorim era que eu pensava. O

Feijó em tanto tinha notado: Diadorim, na retirada, bem conseguido; depois se retrasou, por uma cacimba de grota. – “...

Estava com sangue numa perna de calça. Para mim, foi nada, arranho à-toa...” O que me ensombreceu – então Diadorim

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas estava ferido. Aí, eu mesmo esbarrei, beirávamos o riachinho do Jio, eu quis lavar os pés, que muito me doíam. Acho que, de cansado, estava também com dores redondas de cabeça, molhei minhas fontes. Cansaço faz tristeza, em quem dela carece.

Diadorim estivesse ali, somentemente, espaço disso me alegrava, eu não havia de querer conversar reportório de tiros e combates, eu queria calado a conseqüência dele. Ao modo que eu nem conhecia bem o estorvo que eu sentia. Pena. Dos homens que incerto matei, ou do sujeito altão e madrugador – quem sabe era o pobre do cozinheiro deles – na primeira mão de hora varado retombado? Em tenho que não. Dó que me dava era do Garanço, e o Montesclarense. Quase com um peso, por minha culpa dos dois – eles eu era quem tinha escolhido, para conduzir, e depois tudo. Logo esses – o senhor sabe, o senhor segue comigo. Remorso? Por mim, digo e nego. Olhe: légua e outra, daqui, vereda abaixo, tigre canguçu estragou e arruinou a perna do Sizino Ló, um que foi desse rio de São Francisco, foguista de vapor; depois cá herdou uns alqueires. Comprou-se para ele, então, uma boa perna-de-pau. Mas, assim, talvez por se ter sacolejado um pouco do juizo, ele nunca mais quer sair de casa, nem se levanta quase do catre, vive repetindo e dizendo: – “Ai, quem tem dois tem um, quem tem um não tem nenhum...” Todo

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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas o mundo ri. E isso é remorso? Desgraça a mando era que eu cumpria, azo de que tivesse perdido alguma coisa. Porque dó de amizade é num sofrerzinho simples, e o meu não era. E cheguei no CansançãoVelho, chamado também o Jio, dito.

Lá, com pouco, a gente era doze. Os alguns faltavam, dos que eram para se reunir ali, mas decerto ainda vinham vir. Num ponto me agradei: então, em guerra, quase não se morre? E, mesmo, nas más horas é que vem bom consolo: para o Jio tinha tocado, de antevéspera, o Braz, nessa antecedência em dois jumentos ele tinha trazido mantimento de feijão e arroz, e toucinho para torresmos, e pratos e panela, se cozinhou um jantar.

Tanto que comi, deitei. Dormi impado. Que caso que eu carecia de pensar, que não fosse que na morte do Garanço e do Montesclarense eu não devia nenhum dolo; e que Diadorim ia chegar a vir também, aonde estávamos, mais tardar no romper da aurora? Dormi. Mas daí a logo acordei, mão no rifle, como se vez fosse. E não havia a coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os outros no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, estufando suas redes penduradas de árvore em árvore.

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