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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.
Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?
Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em meio – em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas vermelho, debruçado, deu um soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:
– “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p’ra fora, já, já, essa mulher!”
Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.
– “Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão...
Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...”
Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.
E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma ; por que, nem sabia. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O
marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono para a morte; e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre.
Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.
Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.
E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela –
exclamava – tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora.
Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que, nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.
E foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que de certo modo me divagasse. Mas, foi ele acabar de contar, e escutamos o assovio combinado dos nossos, e demos resposta: era um que chegava – o Paspe – se aparecendo macio dos escuros, com alpercatas sem barulho e o rifle em bandoleira. Ele tinha formado, para a esparrela, com Titão Passos, agora vinha trazer notícia dos dele, seguidos para se ajuntarem ao covo do Capão; e pedir ordens. Rio de homem, esse Paspe: que não temia nem se cansava. Contou: que, aquilo que era para estratagemas, deu foi em por água-abaixo, porque os bebelos tinham botado espiação, ou tomado o faro. Assim, o inimigo contornando, em vez de vir
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas simples: e tochando resposta antes de pergunta, fogo feio – dois mortos, dos titão-passos, companheiros bons; mais três muito feridos. Guerra tinha disso também.
– “Ah, e Zé Bebelo mesmo estava lá, no comando daqueles, em sua dita pessoa?” – perguntei.
– “Decerto que estava. A cujo!” – o Paspe falou; e pediu logo quem tivesse um golinho de cachaça.
Devo, então, que perguntei por Diadorim. Puro por perguntar, sem esperanças de informação. E mesmo, más notícias eu ainda tinha o receio de ouvir. Serviço que me foi, o Paspe me respondeu:
– “Vi, esse por mim passou, até me deu um recado, uail: e para você mesmo: – Vai, diz por mim ao Riobaldo Tatarana: que eu tenho um quefazer, ao que vou, por dias poucos, com breve estou de volta... – foi o que falou. Assim passou, a cavalo – onde terá sido que arrumou montada? Decerto conseguiu algum animal dos bebelos mesmo, que restou no meio de tirotei’...”
Ouvi e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então, não podia ser ele, foras de norma. E ao Paspe reperguntei,
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João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas pedindo o exato. Era. Mas não seria, então, que ele estivesse ferido, numa perna?
Ao que nem não nem sim – mais pelo não que pelo sim... –
o Paspe completou. Não tinha reparado, no relance de tempo. Só viu que o arreio era um socadinho, quase novo, e o cavalo alto, desbarrigado, mas pronto de si, riscando com todas as ferraduras, murzelo-andrino...
Aí, ai, oi, espécie de dor em meus cantos, o senhor sabe.
Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o amigo?
Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia.
Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro.