—
Está doente, Jorge — disse apenas Sebastião.
Jorge não respondeu. Passeou calado algum tempo. Sebastião, imóvel, fatigava a vista contra a chama da luz. Jorge então fechou a carta na gaveta, e tomando o castiçal com um tom de lassidão lúgubre e resignado:
—
Queres vir tomar chá, Sebastião?
E não tornaram mais a falar na carta.
Nessa noite Jorge dormiu profundamente. Ao outro dia o seu rosto estava impassível, de uma serenidade lívida.
Foi daí por diante o enfermeiro de Luísa.
A doença, depois de uma marcha incerta durante três dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia muito, mas Julião estava tranquilo.
Jorge passava os seus dias ao pé dela. D. Felicidade vinha ordinariamente pelas manhãs; sentava-se aos pês da cama, e ficava calada, com uma face envelhecida; aquela esperança na mulher de Tui tão subitamente destruída, abalara-a como um velho edifício a que se tira subitamente um pilar; ia-se
tornando ruína; e só se animava quando o Conselheiro aparecia pelas três horas a saber da "nossa formosa enferma". Trazia sempre alguma palavra grave que dizia com um tom profundo, conservando o chapéu na mão, sem querer entrar alcova, por pudor:
—
A saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge!
Ou:
—
A doença serve para aquilatarmos os amigos.
E terminava sempre:
—
Meu Jorge, as rosas da saúde bem cedo reflorirão nas faces da sua virtuosa esposa!. .
De noite Jorge dormia vestido, num enxergão sobre o chão; mas apenas cerrava os olhos uma ou duas horas. O resto da noite procurava ler: começava um romance mas nunca ia além das primeiras linhas; esquecia o livro, e com a cabeça entre as mãos punha-se a pensar: era sempre a mesma ideia — como tinha sido? Conseguira reconstituir aproximadamente, com lógica, certos factos; via bem Basílio chegando, vindo visitá-la, desejando-a, mandando-lhe ramos, perseguindo-a indo-a ver aqui e além, escrevendo-lhe; mas depois?
Viera já a compreender que o dinheiro era para Juliana. A criatura tivera alguma exigência: tinha-os surpreendido? Possuía cartas?. . E encontrava, naquela reconstrução dolorosa, falhas, vazios, como buracos escuros, onde a
sua alma se arremessava sofregamente. Então começava a recordar os últimos meses desde a sua volta do Alentejo, e como ela se mostrara amante, e que ardor punha nas suas carícias. . Para que o enganara então?
Uma noite, com precauções de ladrão, rebuscou todas as gavetas dela, esquadrinhou os vestidos, até as dobras da roupa branca, as caixas de colares, de rendas; viu bem o cofre de sândalo; estava vazio, nem o pó de uma flor seca! Às vezes punha-se a fitar os móveis no quarto, na sala, a sondá-los como se quisesse descobrir neles os vestígios do adultério. Ter-se-iam sentado ali?
Ele teria ajoelhado aos pés dela, acolá sobre o tapete? Sobretudo o divã tão largo, tão cómodo, desesperava-o; tomou-lhe ódio. Veio a detestar mesmo a casa, como se os tetos que os tinham coberto, os soalhos que os tinham sustentado tivessem uma cumplicidade consciente. Mas o que o torturava sobretudo eram aquelas palavras — o "Paraíso, as boas manhãs.. "
Luísa então já dormia tranquilamente. Ao fim de uma semana os crescimentos desapareceram. Mas estava muito fraca: no dia em que pela primeira vez se levantou, desmaiou duas vezes; era necessário vesti-la, trazê-la amparada para a chaise longue; e não dispensava Jorge, queria-o ali, ao pé, com exigências de criança! Parecia receber a vida dos seus olhos, a saúde do contato das suas mãos. Fazia-lhe ler o jornal pela manhã, e vir escrever para ao pé dela. Ele obedecia, e mesmo aquelas instâncias eram para a sua dor como carícias consoladoras. É porque o amava decerto!
Sentia então, maquinalmente, abertas de felicidade. Surpreendia-se dizer-lhe ternuras, a rir com ela, esquecido, como dantes! E, estendida na chaise longue, Luísa, contente, percorria antigos volumes da Ilustração Francesa, que lhe mandara O Conselheiro — "onde", segundo ele lhe dissera, podia, ao mesmo tempo que se divertia com os desenhos, adquirir noções úteis sobre importantes acontecimentos históricos; ou, com a cabeça reclinada, saboreava a felicidade de melhorar, de estar livre das tiranias da outra, das amarguras do passado.
Uma das suas alegrias era ver entrar a Mariana com o seu jantarzinho disposto num guardanapo sobre o tabuleiro; tinha apetite, saboreava muito o cálice de vinho do Porto, que Julião recomendara; quando Jorge não estava, fazia longas conversas com Mariana, palrando baixo, consolada, e lambendo colherinhas de gelatina.
Às vezes, calada, com os olhos no teto, fazia planos. Dizia-os depois a Jorge: iria estar duas semanas no campo, para ganhar forças; à volta começaria a bordar tiras de casimira para cobrir as cadeiras da sala; porque queria ocupar-se muito da casa, viver recolhida; ele não voltaria ao Alentejo, não sairia de Lisboa, não é verdade? E a sua vida seria dai por diante de uma doçura contínua e fácil.
Mas Luísa às vezes achava-se macambúzio. Que tinha? Ele explicava pela fadiga, pelas noites mal dormidas. . Se adoecesse, ao menos, dizia ela, que
fosse quando ela estivesse forte para o tratar, para o velar!. . Mas não adoeceria, não? E fazia-o sentar ao pé de si, passava-lhe a mão pelos cabelos, com o olhar quebrado, porque com as forças que renasciam vinham os impulsos do seu temperamento amoroso. Jorge sentia que a adorava, e era mais desgraçado!
Luísa, só consigo, tinha outras resoluções. Não tornaria a ver Leopoldina, e frequentaria as igrejas. Saía da doença com uma vaga sentimentalidade devota.
Durante a febre, em certos pesadelos de que lhe ficara uma indistinta ideia aterrada, vira-se às vezes num lugar pavoroso, onde corpos se erguiam, torcendo os braços, do meio de chamas escarlates; formas negras giravam com espetos em brasa, um rugido de agonia subia para a mudez do céu; e já lhe tocavam o peito línguas de fogueiras, quando alguma coisa de doce e de inefável de repente a refrescava; eram as asas de um anjo luminoso e sereno, que a tomava nos braços; e ela sentia-se elevar, apoiando a cabeça contra o seio divino, que a penetrava de uma felicidade sobrenatural; via as estrelas de perto, ouvia frémitos de asas. Aquela sensação deixara-lhe como uma recordação saudosa do céu. E aspirava a ela, nas debilidades da convalescença, esperando ganhá-la pela pontualidade à missa, e pela repetição de coroas à Virgem.
Enfim uma manhã veio à sala, e abriu pela primeira vez o piano; Jorge, à janela, olhava para a rua — quando ela o chamou, e sorrindo:
—
Estou a detestar, há tempos, aquele divã — disse. — Podia-se tirar, não te parece?
Jorge sentiu uma pancada no coração: não pôde responder logo; disse, enfim, com esforço:
—
Sim, parece. .
—
Estou com vontade de o tirar — disse ela saindo da sala, arrastando tranquilamente a longa cauda do seu roupão.