Foi reler todas as cartas que ela lhe escrevera para o Alentejo, procurando descobrir nas palavras sintomas de frieza, a data da traição! Tinha-lhe ódio então, voltavam-lhe ao cérebro ideias homicidas — esganá-la, dar-lhe clorofórmio, fazer-lhe beber láudano! E depois imóvel, encostado à janela, ficava esquecido num cismar espesso, revendo o passado, o dia do seu casamento, certos passeios que dera com ela, palavras que ela dissera. .
Às vezes pensava — seria a carta uma mistificação? Algum inimigo dele podia tê-la escrito, remetido para a França. Ou talvez Basílio tivesse outra Luísa em Lisboa, e por engano ao sobrescritar o envelope tivesse escrito o nome da prima; e a alegria momentânea que lhe davam aquelas fantasias fazia-lhe parecer a realidade mais cruel. Mas como fora? Como fora? Se pudesse saber a verdade! Tinha a certeza que sossegaria, então! Arrancaria decerto do seu peito aquele amor como um parasita imundo; apenas ela melhorasse, levá-la-ia a um convento, e ele iria morrer longe, na África, ou algures. . Mas quem saberia?. . JULIANA!
Era ela que sabia! Decerto! E todas as condescendências dela por Juliana, os móveis, o quarto, as roupas, compreendeu tudo! Era a pagar a cumplicidade!
Era a sua confidente! Levava as cartas, sabia tudo. E estava na vala, morta, sem poder falar, a maldita!
Sebastião, como costumava, veio à noitinha. Não havia ainda luzes, e, apenas ele entrou, Jorge chamou-o ao escritório, calado, acendeu uma vela, tirou a carta da gaveta.
—
Lê isto.
Sebastião ficara assombrado ao ver o rosto de Jorge. Olhava a carta fechada, e tremia. Apenas viu a assinatura, uma palidez de agonia cobriu-lhe o rosto.
Parecia-lhe que o soalho tinha uma vibração onde ele se firmava mal. Mas dominou-se leu devagar, pousou a carta sobre a mesa, sem uma palavra.
Jorge disse então:
—
Sebastião, isto pra mim é a morte. Sebastião, tu sabes alguma coisa. Tu vinhas aqui tu sabes. Diz-me a verdade!
Sebastião abriu devagar os braços e respondeu:
—
Que te hei de eu dizer? Não sei nada!
Jorge agarrou-lhe as mãos, sacudiu-lhas, e procurando o seu olhar ansiosamente:
—
Sebastião, pela nossa amizade, pela alma da tua mãe, por tantos anos que temos passado juntos, Sebastião, diz-me a verdade!. .
—
Não sei nada. Que hei de eu saber?
—
Mentes!
Sebastião disse apenas:
—
Podem-te ouvir, homem!
Houve um silêncio: Jorge apertava as fontes nas mãos, com passadas pelo escritório, que faziam vibrar o soalho; e de repente pondo-se diante de Sebastião quase suplicante:
—
Mas diz-me ao menos o que fazia ela! Saía? Vinha aqui alguém?
Sebastião respondeu devagar, os olhos fixos na luz:
—
Vinha o primo às vezes, ao princípio. Quando a D. Felicidade esteve doente, ela ia vê-la. . O primo depois partiu. . Não sei mais nada.
Jorge esteve um momento a olhar Sebastião, com uma fixidez abstrata.
—
Mas que lhe fiz eu, Sebastião? Que lhe fiz eu? Adorava-a! Que lhe fiz eu para isto? Eu, que a adorava, àquela mulher!
Rompeu a chorar.
Sebastião ficara de pé junto à mesa, estúpido, aniquilado.
—
Foi talvez uma brincadeira, apenas. . — murmurou.
—
E o que diz a carta? — gritou Jorge, voltando-se numa cólera, sacudindo o papel. — Este "Paraíso!", "As boas manhãs" lá passadas! E uma infame!. .