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- Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta á cara com um escarro.

Além d'isso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostões...

- O Eusebiosinho é homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos.

Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo áquella amisade, como a um cofre inexgotavel...

- Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que já não faz frio...

Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque - em quanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos não tardou, trazendo na mão o cheque, que alargara até cento e vinte libras, para o Ega ficar armado...

- Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um bello suspiro de allivio.

Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villão! Mas tinha já uma vingança. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n'um sacco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começando assim: - ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho, etc....

- Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!...

Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu Atomo: - e, por fim, n'uma voz diferente, applicando o monocolo a Carlos:

- Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?

Carlos tinha só esta rasão: não se divertia lá.

Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade...

- Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á cara.

E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observação, tinha a visão correcta: pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, toda a expressão de um sentimento sincero...

- Não estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres.

Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas...

- Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do codigo, então não fallemos mais n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichões por qualquer cousa, então era uma vez um homem, vae para a Trappa commentar o Ecclesiastes..

- Não - disse Carlos, sentando-se n'um banco sob as arvores, ainda com uns restos da preguiça do terraço - o meu motivo não é tão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho um massador.

Ega teve um sorriso mudo.

- Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores...

Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silencio o chão areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com melancolia:

- Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das dez á uma, estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!

Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se debatia, n'aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se.

- Meu pobre Ega, então toda a demanda?

- Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral! E interessei-me! E tive opiniões!...

A vida é um inferno.

Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.

- Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.

- Decidiu-se hontem! Não ha cotillon.

Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A idéa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes proporções de gala artistica, a ressurreição historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa - e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples baile costumé, a capricho...

- Tu, Carlos, já decidiste como vaes?

- De dominó, um severo dominó preto, como convém a um homem de sciencia...

- Então, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominó... Que sensaboria, um dominó!...

Justamente a sr.ª D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos dominós.

E em Carlos não havia desculpa. Não o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da Renascença, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

- É n'isto, ajuntava elle com fogo, que está a belleza de uma soirée de mascaras! Não lhe parece você, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra...

- Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no terraço com Craft.

- Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irmã de Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da Renascença, a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E

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