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Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:

- Vocês lembram-se, rapazes, nas Flôres e Martyrios, de uma das cousas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto? Não se lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!

Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E com elle fluctuante na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n'uma paixão ephemera de nervoso:

Vieste! Cingi-te ao peito.

Em redor que noite escura!

Não tinha rendas o leito,

Nem tinha lavores na barra

Que era só a rocha dura...

Muito ao longe uma guitarra

Gemia vagos harpejos...

(Vê tu que não me esqueceu)...

E a rocha dura aqueceu

Ao calor dos nossos beijos!

Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:

- Foi alli.

E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo panamá, com o lenço branco na mão. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do terraço - o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.

Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava os maus dentes n'um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:

- Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela sublime.

O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi phantastica, como a illustração de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha

de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda côr de violeta escura, coroada pelo castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro...

Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma bella phrase sobre a imaginação dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.

Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir á Pena. Alencar, por si, ía tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E

olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que elle seguia... Por fim teve uma idéa.

- Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se quizermos ir á Pena, arranjam-se lá os burros...

E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera tambem uma idéa, fallava de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico, ornava o chapéo de folhas de hera.

Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, não tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiçavam ao sol.

- Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...

Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.

- Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e aqui está o burrinho tambem para v. ex.ª, meu amo!

Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fôra para a Pena estava no Nunes...

- A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio...

- Uma senhora alta?

- Sim senhor.

- Com um sujeito de barba preta?

- Sim senhor.

- E uma cadellinha?

- Sim senhor.

- Tu conheces o sr. Damaso Salcede?

- Não senhor... É o que tira retratos?

- Não, não tira retratos... Tomae lá.

Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem á Pena.

- Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio. Isso é que tem originalidade e cachet!

Não é verdade, Alencar?...

- Eu vos digo, filhos, começou o auctor de Elvira, historicamente fallando...

- E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

- Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessario não perder tempo; a caminho!

Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo já o portão, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo peito, e o cãosinho felpudo ao collo.

Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e em hespanhol.

Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os pedaços d'um bello marmore quebrado. Não esperou mais pelos outros, nem os quiz encontrar.

Correu á Lawrence por um caminho differente, avido de uma certeza: - e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra...

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