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A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do véo.

- Gosto da sua alegria, disse ella.

- É uma questão de regimen. V. ex.ª não é alegre?

Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do guarda-sol na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n'um tom d'intimidade e de confidencia:

- Dizem que não, que sou triste, que tenho spleen...

O olhar de Carlos seguira o d'ella, pousara-se na botina de verniz que calçava delicadamente um pé fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas do piano - e elle baixou a voz para lhe dizer:

- É que a senhora condessa tem um mau regimen. É necessario tratar-se, voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer!

Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d'onde se escapou um clarão de ternura e de triumpho:

- Venha-m'o antes dizer um d'estes dias, tomar chá comigo, ás cinco horas... Charlie!

O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braço.

Carlos, acompanhando-a abaixo á rua, lamentava a fealdade da sua escada de pedra:

- Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me a honra de me vir consultar...

Ella gracejou, toda risonha:

Ah não! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude... E naturalmente não espera que seja eu que venha cá tomar chá comsigo...

- Oh, minha senhora, eu quando começo a esperar, não ponho limites nenhuns ás minhas esperanças...

Ella parou, com o pequeno pela mão, olhou para elle, como pasmada, encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo.

- Então vae por ahi além, por ahi além...?

- Vou por ahi além, por ahi além, minha senhora!

Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.

- Mande-me chegar um coupé.

Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipoia.

- E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir á egreja da Graça.

- A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor dos Passos?

Ella corou de leve, murmurou:

- Ando fazendo as minhas devoções...

Depois saltou ligeiramente para o coupé - deixando Charlie, que Carlos ergueu nos braços e lhe collocou ao lado, paternalmente.

- Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!

Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeça - ambos tão doces como caricias.

Carlos subio: e, sem tirar o chapéo, ficou ainda enrolando uma cigarrette, passeando n'aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora alguma cousa do seu calor e do seu aroma...

Realmente gostava d'aquella audacia d'ella - ter vindo assim ao consultorio, toda escondida, quasi mascarada n'uma grande toilette negra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para o vêr, para dar um nó brusco e mais apertado n'aquelle leve fio de relações que elle tão negligentemente deixara cahir e quebrar...

O Ega d'esta vez não phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se, tão claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos errantes e faceis - que bella flôr a colher, a respirar, a deitar fóra depois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa

nunca se tinha divertido. E o que elle não queria era achar-se envolvido n'uma paixão ciosa, uma d'essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta annos, de que depois se desembaraçaria difficilmente... Nos braços d'ella o seu coração ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, começaria o tedio dos beijos que se não desejam, a horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa, receber pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara d'aquella audacia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e picante... E devia ser deliciosamente bem feita... A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fórmas onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos tentavam-n'o, assim avermelhados, tão crespos e quentes...

Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o Damaso, n'um coupé lançado a grande trote, que o chamava, mandava parar, com a face á portinhola, vermelho e radiante:

- Não tenho podido lá ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da mão, apenas Carlos se approximou, e apertando-lh'a com enthusiasmo. Tenho andado n'um turbilhão!... Eu te contarei! Um romance divino... Mas eu te contarei!... Tem cuidado com a roda! Bate lá, ó Calção!

A parelha abalou; elle ainda se debruçou da portinhola, agitou a mão, gritou no rumor da rua:

- Um romance divino, chic a valer!

Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava de «bater»

o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo o cachimbo:

- E noticias do nosso Damaso? Já se esclareceu esse lamentavel desapparecimento?...

Carlos então contou como o encontrára, afogueado e triumphante, atirando-lhe da portinhola do coupé, em plena rua Nova do Almada, a noticia de um romance divino!

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