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Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia de uma phrase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéa... Viva a bella phrase!

- O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando começava justamente a tocar a sineta do almoço.

- Fallae na phrase... - disse Affonso, rindo.

- Hein? Que phrase? O que?... - exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui a esta hora sr.

Affonso da Maia! Como está v. ex.ª? Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirar d'uma atrapalhação... Tu terás por acaso uma espada que me sirva?

E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impaciente:

- Sim, homem, uma espada! Não é para me batter, estou em paz com toda a humanidade... É para esta noute, para o fato de mascara.

O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera o costume para o baile: e, qual é o seu horror, ao vêr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh'o passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahão, que só tinha espadins de côrte, reles e pelintras como a propria côrte! Lembrara-se do Craft e da sua collecção; vinha de lá; mas ahi eram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a India... Nada que lhe servisse. Fôra então que lhe tinham vindo á idéa as panóplias antigas do Ramalhete.

- Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos em concha, d'aço rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz!

Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas...

- Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com a mão no reposteiro.

Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Não estavam á vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixões em que tinham vindo de Bemfica.

- Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse Carlos, erguendo-se com resignação. Mas olha que ellas não têem bainhas.

Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idéa, o salvou.

- Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n'uma hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate...

- Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!

E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.

- Veja v. ex.ª isto, um sabre da guarda municipal! E é quem faz ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!... E é tudo assim, isto é um paiz insensato!...

- Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado, sete milhões d'almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?

- Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mãos enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O costumier com um fato do seculo XIV

manda um sabre da guarda municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as Meditações de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema...

Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, uma folha do seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como uma renda - e tendo gravado no aço o nome illustre do espadeiro, Francisco Ruy de Toledo.

Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou á pressa o almoço que lhe ofereciam, deu dous vivos shake-hands, atirou o chapéu para a nuca, ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:

- Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é uma espada cá da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... Vê como te serves d'ella!

Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado no Jornal do Commercio:

- Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra. Au revoir!

- Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz é este John!... Pois vae-te arranjando filho, que já tocou a primeira vez para o almoço.

Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, á entrada particular, o timbre electrico começou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido, d'olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando os braços ao ar:

- Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d'ahi, que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquella gente brazileira. Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

Carlos erguera-se, pallido:

- É ella?

- Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é minha!

- É um bébé, não é?

- Qual bébé!... É uma pequena crescida, de seis annos... Anda d'ahi!

Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botões da bota. E Damaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a estalar de importancia.

- Sempre a gente se vê em coisas!... Olha que responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo ás vezes, de manhã... E vae, tinham partido para Queluz.

Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:

- Mas então?...

- Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico inglez, porque não falla senão inglez... Do hotel foram procurar o Smith, que não appareceu... E a pequena a morrer!...

Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!

E acrescentou, dando um olhar ao jardim:

- Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes! Hão-de-se divertir... Estás prompto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vaes muito bem sem luvas!

- O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.

Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi o assento.

- Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores.

Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a apparição do Damaso lhe faiscava nos labios.

- Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?...

O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra tudo um equivoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido d'um gentleman. Senão quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguem! a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do Grand Hotel em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que elle vivia lá, obdecendo á indicação, mandara para lá os seus cartões! Curioso, hein? E

de estupido... E a falta de resposta aos telegrammas fôra culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de afflicção, vendo o marido com o braço escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram intimos, estava lá quasi sempre...

- Emfim, menino, um romance... Mas isso é para mais tarde!

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