Então o marquez que o não via desde o famoso ataque de intestinos, abandonou o dominó, correu a abraçal-o ruidosamente – e sem o deixar sequer sentar, nem estender a mão aos outros, implorou-lhe logo uma das suas bellas canções filandezas, uma só, d'aquellas que lhe faziam tão bem á alma!...
- Só a Ballada, Steinbroken... Eu tambem não me posso demorar, que tenho aqui a partida á espera. Só a Ballada!... Vá, salta lá para dentro para o piano, Cruges...
O diplomata sorria, dizia-se cançado, tendo já feito musica deliciosa no Paço com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir áquelle modo folgazão do marquez - e lá foram para a sala do piano, de braço dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se do canto do sophá. E d'ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos, a bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a emballadora melancolia da Ballada, com a sua lettra traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava das nevoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras...
Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado uma grande partida de dominó, a tostão o ponto. Mas Carlos n'essa noite não se interessava, jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes da Ballada: depois, quando já Taveira tinha só uma pedra diante de si, e elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra, estava aberto todo o anno...
- A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda, joga!
Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra.
- Dominó! gritou Taveira.
E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos que Carlos perdia.
Justamente o marquez entrava, e a victoria de Taveira indignou-o.
- Agora nós, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me você dar aqui uma sova n'este ladrão. Depois jogamos de tres... Como queres tu isto, Taveirete?
A dous tostões o ponto? Ah, queres só a tostão... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraça-te já d'esse dôble-seis, miseravel...
Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fôra ao escriptorio vêr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges só, entre as duas vélas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente.
- Dize cá, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ámanhã a Cintra?
O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado. Carlos nem o deixou falar.
- Está claro que queres, não te faz senão bem vir a Cintra... Ámanhã lá estou á porta, com o break.
Mette sempre uma camisa n'uma maleta, que talvez passemos lá a noite... Ás oito em ponto, hein?... E não digas nada lá dentro.
Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominó. Agora havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braço descahido ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente.
VIII
Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente, Carlos parava o break na rua das Flores, diante do conhecido portão da casa do Cruges. Mas o trintanario, que elle mandara acima bater á campainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que o Sr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava então o sr. Cruges? A criada dissera que o Sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir só para Cintra. Depois lá largou para a rua de S.
Francisco, amaldiçoando o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera obra egual á Meditação de Outono do Cruges. E
ninguem sabia mais nada. Fôra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma senhora viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.
Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta do senhor e um chaile-manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhões, com um cache-nez de seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando atarantadamente o paletot.
Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiçada de mulher gritou-lhe de cima:
- Olha não te esqueçam as queijadas!
E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando que, com a preoccupação de se levantar tão cedo, tivera uma insomnia abominavel...
- Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa, sem avisar a gente, homem? -
exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do plaid que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.
- É que esta casa tambem é nossa, disse simplesmente Cruges.
- Está claro, ahi está uma razão! murmurou Carlos rindo e encolhendo os hombros.
Partiram.
Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os seus ceirões d'hortaliças: varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um toque fino de missa.
Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu um olhar á esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librés, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia -
onde fazia mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas côres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n'aquella almofada burgueza de break, lhe dava um arranque de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra...
Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios.
- Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta de ir a Cintra?
Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart, e pelas fugas de Bach? Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de Deus, que o não revelasse a ninguem!
E accrescentou, rindo:
- Deixa-te levar, que não te has de arrepender...
Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o passeio, gostara sempre muito de Cintra... Todavia não se lembrava bem, tinha apenas uma vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d'aguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove annos não voltara a Cintra.
O que! o maestro não conhecia Cintra?... Então era necessario ficarem lá, fazer as peregrinações classicas, subir á Pena, ir beber agua á Fonte dos Amores, barquejar na varzea...