- Bem sei, disse o Taveira.
- Como sabes?... exclamou Carlos.
Taveira vira-o na vespera, n'um grande landeau da Companhia, com uma esplendida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...
- Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza?
- Exactamente, uma cadelinha escoceza, um griffon côr de prata... Quem são?
- E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado?
- Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente é?
- Uma gente brazileira, penso eu.
Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas duas semanas que no terraço o Damaso, de punhos fechados, bramara contra os Castro Gomes e as suas «desconsiderações»! Ia pedir outros pormenores ao Taveira - mas o marquez ergueu a voz do fundo da poltrona onde se estirára, e quiz saber a opinião de Carlos sobre o grande acontecimento d'essa manhã na Gazeta Illustrada. - Na Gazeta Illustrada?... Carlos não sabia, essa manhã não vira jornal nenhum.
- Então não lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza! Cá ha a Gazeta?
Manda buscar a Gazeta!
Taveira puxou o cordão da campanhia; - e quando o escudeiro trouxe a Gazeta, elle apoderou-se d'ella, quiz fazer uma leitura solemne.
- Deixa-lhe vêr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se.
- Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal atraz das costas.
Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudario desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen... E a prosa que se alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas retintas, era um trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e cantante, celebrando até aos céus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro do Cohen, os ditos d'espirito do Cohen, a mobilia das salas do Cohen; havia ainda um paragrapho alludindo á festa proxima, ao grande sarau de mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado - J. da E. - as iniciaes de João da Ega!
- Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do bilhar.
- É mais que tolice, observou Craft; é uma falta de senso moral.
O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso moral?...
- Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito natural. É intimo da casa, celebra os donos. É admirador da mulher, lisongea o marido. Está na logica cá da terra... Você verá que successo isto vae ter... E lá que o artigo está lindo, isso está!
Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir côr de rosa de madame Cohen: «respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle côr de rosa exhalasse de si o aroma que a rosa tem»!
- Isto, caramba, é lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!...
- Nada d'isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que seja uma extraordinaria falta de senso moral.
- Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto d'um sophá, para deixar cahir ás syllabas esta pesada opinião.
O marquez investiu com elle.
- Que entende você d'isso, seu maestro? O artigo é sublime! E saiba mais: é de finorio!
O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar em silencio ao outro canto do sophá.
E então o marquez, de pé e bracejando, appellou para Carlos, e quiz saber o que é que Craft em principio entendia por senso moral.
Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não respondeu, tomou o braço do Taveira, levou-o para o corredor.
- Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que lado iam?
- Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ás duas horas... Estou convencido que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n'um coupé com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a mulher é divina! Que toilette, que ar, que chic!.. É uma Venus, menino!... Como conheceria elle aquillo?...
- Em Bordeus, n'um paquete, não sei onde!
- Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado! Cumprimento para a direita, cumprimento para a esquerda... A debruçar-se, a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno, alardeando conquista...
- Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pé no tapete.
- Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher civilisada e decente, e é elle que a conhece, e é elle que vae com ella para Cintra! Chama-lhe besta!...
Anda d'ahi, vamos á partidinha de dominó.
Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete - e havia agora alli, ás vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez. Porque a paixão do Taveira era bater o marquez.
Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o arrazoado com que estava acabrunhando o Craft - que do fundo da poltrona, de cachimbo na mão e com um ar de somno, respondia por monossyllabos. Era ainda a proposito do artigo do Ega, da definição de senso moral. Já tinha fallado de Deus, de Garibaldi, até do seu famoso perdigueiro Finorio; e agora definia a Consciencia.... Segundo elle, era o medo da policia.
Tinha o amigo Craft visto já alguem com remorsos? Não, a não ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhões...
- Acredite você uma cousa, Craft - terminou elle por dizer, cedendo ao Taveira que o puchava para a meza - isto de consciencia é uma questão de educação. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a não metter os dedos no nariz. Questão d'educação... No resto da gente é apenas medo da cadeia, ou da bengala... Ah! vocês querem levar outra sova ao dominó como a de sabbado passado? Perfeitamente, sou todo vosso...
Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, approximou-se tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as pedras - quando á porta da sala appareceu o conde de Steinbroken, de casaca e crachá, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha jantado no Paço, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirée, em familia...