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- Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar ámanhã em casa, a vêr se elle te manda desafiar a ti...

- O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde, é um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu estás doido...

E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellões para traz ao manto que faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas.

Carlos não dizia nada, de pé junto da meza, enchendo lentamente de novo a sua chavena. Tudo aquillo começava a parecer-lhe pouco serio, pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furores melodramaticos do Ega: - e mesmo não podia deixar de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d'honra e de morte, com sobrancelhas postiças, e escarcella de coiro á cinta.

- Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca resolução.

Quero vêr o que diz o Craft. Tenho lá em baixo uma tipoia, estamos lá n'um instante!

- Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.

- Se és meu amigo, Carlos!...

Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.

Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de chá, deitando-lhe rhum, ainda tão nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. Fóra, a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão molle do jardim.

- Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos de dentro.

- Aguenta, é o Canhôto, disse Ega.

Agora reparara no dominó, fôra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o bello laço azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande espelho-psyché, entalou o monoculo no olho, recuou um passo, contemplou-se d'alto a baixo; - e terminou por pousar uma das mãos na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.

- Eu não estava mal, oh Carlos, hein?

- Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como estava ella?

- Devia estar de Margarida.

- E elle?

- A besta? De beduino.

E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto por traz, n'uma prega fidalga.

- Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mãos, tu não fazes idéa do que se passou, o que elle diria á mulher, o

escandalo...

- Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Rachel... Depois é que ellas são!

Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:

- É horroroso!

Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a face:

- Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!

- Tira-as...

Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz.

Mas arrancou-as por fim - e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça.

Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. - E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate á Carlos IX

emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho.

Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:

- Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...

O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que nada no mundo ia bem.

Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer d'agua, atroando a calçada.

Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braços d'outros, anciosa, á espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito - todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.

Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se offereciam...

Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão lamacento.

Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.

Ega rompera logo a contar o seu caso - emquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão. Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accomodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.

- Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas tu agora?

- Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que não manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.

- Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.

Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos.

Ali estava, n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua teima - um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não!

Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, á civilisação!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...

- Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um sophá.

Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.

Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril, nem theatral... A questão estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher.

Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés...

Are sens