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Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo até á roda das saias, com os olhos faiscantes.

- Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham.

A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:

- Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle.

Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mão tremula.

Então Carlos enojado, cançado d'aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...

- Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.

De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se lá outra vez.

- Você não está farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.

- Não. Acho um estudo curioso.

Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo - quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia partira.

- Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?

E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.

No André tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera para os senhores se entreterem.

De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.

- Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado descobriu!...

- A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel.

Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.

Ega erguera-se:

- Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal?

Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel ía vêl-a de vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?... Além d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e punha um waterproof...

Craft cumprimentou.

- É brilhante! Parece de Scribe.

- Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...

- A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... Ás vezes mesmo em casa d'ella.

- Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se.

- Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco libras.

O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio accommodaram-se á meza.

Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir, receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce.

Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde ardiam as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel: - e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O

sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a veria! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo - e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.

Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe, - escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.

- Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava estas cousas com um ar cançado e doente.

Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.

Ah, elle sabia-o bem! Tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica, e fosse independente.

Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos - que fôra excellente - contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.

Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n'essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as Memorias d'um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos não perturbou esta radiante illusão.

Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens - e elle seria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.

Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações.

A mãe do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi uma divertida carreira de faia.

Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas?

Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente. Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam

«cousas contra a natureza», e que o pagem não era só para servir á meza... Nauseado até á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor romantico:

- Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro!

Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:

- Má estreia, filho, pessima estreia!

E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem comsigo: - Pessima estreia!... E nem só a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso, as palavras do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memorias d'um Atomo, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima estreia!

Não, a vida não lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!... Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.

Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.

- Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já visto a pequena...

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