E, á pressa, foi á paz da libra, n'um terno contra o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi com emoção que elle começou a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n'um vagar mortal. A apparição de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas as mãos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:
- Então, sempre continúa toda a libra?...
- Toda.
Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente as cartas.
- Rei! gritou elle, empolgando o ouro.
Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso.
Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito horas, com luzes; - e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n'esse dia as desillusões da vida, todos os rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordações da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da Regeneração... Tudo isto com estridencias de voz, e filhos isto! e rapazes aquillo! e gestos que faziam oscillar as chamas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza, os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdem, para esta desordenada exhuberancia de meridional.
A apparição do bacalhau foi um triumpho: - e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!
- Sempre queria que elle provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... N'outro dia fil-o lá em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraçou-me...
Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pae Dumas não é um poeta... E então d'Artagnan? D'Artagnan é um poema... É a faisca, é a phantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arrobo! Então, pôço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-devos arranjar umas perdizes á hespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!...
Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, historias... Um lyrio é tão natural como um persevejo... Uns preferem fedôr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pós de marechala n'um seio branco; a mim o seio, e, lá vae á vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-n'o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo...
Pois, assim é que elles se querem, e, lá vae á saude do Ega!
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
- E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta portuguez!...
Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta portuguez, e o jantar terminou n'um café tranquillo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.
Alencar, embuçado num capote, um verdadeiro capote de padre de aldêa, levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá na maleta, trazia um bonet de lontra. O
maestro, pesado do jantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram.
Cintra ficava dormindo ao luar.
Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaços, a estrada apparecia banhada d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores com um ar de melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio d'aroma.
Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua.
Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d'entre os seus agasalhos:
- Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...
O poeta condescendeu logo - apesar de um dos criados ir ali ao lado d'elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, ía dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, n'um tom familiar e simples:
Era o jardim d'uma vivenda antiga,
Sem arrebiques d'arte ou flôres de luxo;
Ruas singellas d'alfazema e buxo,
Cravos, roseiras...
- Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanario.
O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:
- Esqueceram-me as queijadas!
IX
O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d'essa semana tão luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre o jardim, vira um céu baixo que pesava como se fosse feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de sudoeste. Decidira não sahir - e desde as nove horas, sentado á banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o bello ar de um principe artista da Renascença, tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de café, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o céu fóra, conservava-se-lhe n'essa manhã afogado em nevoas. Tinha d'estes dias terriveis; julgava-se então «uma besta»; e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete aos pés, davam-lhe a sensação de ser todo elle uma ruina.
Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta com as idéas rebeldes, quando Baptista annunciou Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda de montados no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.
- Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapéo a um canto da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois contos de réis... E não é mau presente, logo assim pela manhã...
Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as mãos por trás da cabeça:
- Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos de réis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d'uma estupidez!
Villaça considerou-o um momento, com malicia.
- Quer v. ex.ª dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que receber assim perto de quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são gostos... Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas dous contos de réis, são dous contos de réis... Olhe que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio é este. Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braços cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que Villaça trazia (um macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os com um ar moribundo.
- Então não fica para almoçar, Villaça? disse elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braço.
- Muito agradecido a v. exa. Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio...