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- Deus queira com effeito que não chova no domingo, murmurou Carlos quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.

Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao Ferregial. Adiante do Gremio, encostado ao passeio, estava um coupé da Companhia, com um trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado á portinhola, um rosto de creança, d'uma brancura adoravel, sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella não se contentou em sorrír, com o seu doce olhar azul fugindo todo para elle, - deitou a mãosinha de fóra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro d'estatua, um tom ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, tão perturbado, que os seu passos hesitaram. Ella abaixou a cabeça, de leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d'emoção, espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, da mãe e da filha, ao mesmo tempo, viesse para elle uma suave e quente emanação de sympathia.

- Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a impressão de Madame Gomes.

Carlos córou.

- Não, é uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha...

- Irra! que gratidão! rosnou o outro de dentro das dobras do seu cachenez.

Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idéa que lhe viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que é que Damaso não levaria uma manhã o Castro Gomes aos Olivaes, a vêr as collecções do Craft?... Elle estaria lá, abria-se uma garrafa de Champagne, discutiam bric-à-brac. Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro Gomes a almoçar no Ramalhete, para lhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E assim, já antes das corridas existiria entre elles uma camaradagem, talvez um tratamento de você.

No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, até ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella lenta inclinação de cabeça, o olhar d'ella, o vivo rubor fugitivo... Ella até ahi não o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande adeus, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mãe, a dizer-lhe decerto que aquelle era o medico que a curara, a ella e á boneca... E então a linda côr que lhe enternecera o rosto tomava uma significação mais profunda - era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o homem que ella notára já de algum modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado á beira do seu leito...

Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora, mais brilhante.

Porque não iria ella tambem vêr as curiosidades do Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava um lunch delicado no seu velho serviço de

Wedgewood. Elle ficava á meza junto d'ella. Depois iam vêr o jardim já em flôr; ou tomavam chá no pavilhão japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando ambos diante d'uma bella faiença ou d'um movel raro, e sentindo, atravez da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos seus corações... Nunca a vira tão formosa como n'essa tarde, dentro do coupé forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura do seu perfil. Sobre o regaço do vestido negro pousava o tom claro das suas luvas; e no chapéo frisava-se a ponta de uma penna cor de neve.

A tipoia parara ao portão do Ramalhete, estavam agora entre as silenciosas tapessarias da ante-camara.

- Como é que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez, com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache-nez.

Carlos olhou para elle, como mal acordado.

- Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem você razão!... Aquella era a casa do Cruges! A carruagem estava parada á porta do Cruges!...

Talvez alguem que móre n'outro andar.

- Não móra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor. Em todo o caso, é um mulherão.

Carlos achou a palavra odiosa.

Do corredor ouvia-se já no escriptorio de Affonso, atravez da porta aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d'handicap e de dead-beat... E foram-n'o encontrar discursando sobre as corridas, com convicção, com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto do sophá, Craft folheava um livro.

E o Damaso appellou logo para o marquez. Não era verdade, como elle estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores corridas que se tinham feito em Lisboa?

Só para o grande premio nacional de seiscentos mil réis havia oito cavallos inscriptos!

E, além d'isso, o Clifford trazia a Mist.

- Ah, é verdade, oh marquez, é necessario que você appareça sexta-feira á noite no Jockey-Club, para acabarmos o handicap!

O marquez arrastara uma cadeira para o pé de Affonso, para lhe fazer a confidencia dos seus achaques; mas como Damazo se mettia entre elles, fallando ainda da Mist, decidindo que a Mist era chic, querendo apostar cinco libras pela Mist contra o campo – o marquez terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos... Apostar pela Mist! Todo o patriota devia apostar pelos cavallos do visconde de Darque, que era o unico criador portuguez!...

- Pois não é verdade, sr. Affonso da Maia?

O velho sorrio, amaciando o seu gato.

- O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de corridas, fazer uma boa tourada.

Damazo levou as mãos á cabeça. Uma tourada! Então o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um inglez!...

- Um simples beirão, sr. Salcede, um simples beirão, e que faz gosto n'isso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então, me pôz fóra do meu paiz... Pois é verdade, tenho esse fraco portuguez, prefiro touros. Cada raça possue o seu sport proprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca, e foguetes... Mas sabe o sr.

Salcede qual é a vantagem da toirada? É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza... Em Portugal não ha instituição que tenha uma importancia egual á tourada de curiosos. E acredite uma cousa: é que se n'esta triste geração moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco, deve-se isso ao touro e á tourada de curiosos...

O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo é que era fallar! Aquillo é que era dar a philosophia do toiro! Está claro que a tourada era uma grande educação phisica! E

havia imbecis que fallavam em acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes então com a coragem portuguesa!...

- Nós não temos os jogos de destresa das outras nações, exclamava elle, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. Não temos o cricket, nem o football, nem o running, como os inglezes; não temos a gymnastica como ella se faz em França; não temos o serviço militar obrigatorio que é o que torna o allemão solido... Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos só a tourada... Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha, a mellarem-se pelo Chiado! Pois você não acha, Craft?

Craft, do canto do sophá, onde Carlos se fôra sentar e lhe fallava baixo, respondeu, convencido:

- O que, o touro? Está claro! o touro devia ser n'este paiz como o ensino é lá fóra: gratuito e obrigatorio.

Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem muito de touros. Ah, lá n'essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava a palma... Mas as corridas tinham outro chic! Aquelles Bois de Boulogne, n'um dia de Grand-Prix, hein!... Era de embatucar!

- Sabes o que é pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos. É que tu não tenhas um four-in-hand, um mail coach. Iamos todos d'aqui, cahia tudo de chic!

Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena não ter um four-in-hand. Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da Conceição irem todos dentro d'um omnibus.

Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braços, descorçoado:

- Ahi está, sr. Affonso da Maia! Ahi está por que em Portugal nunca se faz nada em termos! É por que ninguem quer concorrer para que as cousas saiam bem... Assim não é possivel! Eu cá entendo isto: que n'um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto possa, para a civilisação.

- Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande palavra!

- Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo...

- Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste tu pela civilisação?...

- Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou de véo azul no chapéo!

Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n'uma salva. O velho, sorrindo ainda das idéas de Damaso sobre a civilisação, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio.

- Isto é que é ter gosto, isto é que é comprehender as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços para Carlos, quando o velho desappareceu atravez do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino, é podre de chic!...

- Deixa lá o chic do avô... Anda cá, que te quero dizer uma cousa.

Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá o Damaso, e disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle já fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de flores. E agora só restava que Damaso amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro Gomes...

- Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás com furor de a conhecer!

Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasião para elle!...

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