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- O Ega diz que o hymno é a definição pela musica do caracter d'um povo. Tal é o compasso do hymno nacional, diz elle, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a sr.ª

D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A Marselheza avança com uma espada núa. O God save the queen adianta-se, arrastando um manto real...

- E o hymno da Carta?

- O hymno da Carta ginga, de rabona.

E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente o binoculo no regaço, murmurou:

- Tiene cara de buena persona.

- Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!

No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos Productos. Eram o n.º1 e o n.º 4. D.

Maria Telles quiz-lhe saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programma:

- Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braço. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia...

Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma, e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado n'esse dia, com um lustre d'oleo na grenha, levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente D. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham dançado muita ardente mazurka nos salões de Arroios. Ella tratava-o por tu. Elle dizia sempre boa amiga, e querida Maria.

- Deixa vêr os nomes d'esses cavallos, Alencar... Senta-t'ahi, anda, faze companhia.

Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes dos cavallos eram Jupiter e Escossez...

- Nenhum d'esses nomes me agrada, não aposto. E então que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha...

Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e passando a mão pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de elegancia, um perfume de côrte... Depois, lá em baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia do apuramento das raças cavallares...

- Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d'isso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que o apuramento...

- Sim, com effeito, o apuramento, muito importante... - disse Carlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.

Eram quasi tres horas, e agora, de certo, ella já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não apparecia tambem... Começava a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tédio.

No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos d'ourello, passou pelo braço do irmão, abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas côr de tomate, a estalar dentro d'um vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atraz o barão, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande chapéo de palha.

D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de perú, a voz da baroneza achando que c'était charmant, c'était très beau. O barão, aos pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante d'aquelles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte núa.

Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica, deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!

D. Maria sorria, olhando com sympatia o poeta. E voltando-se de repente para a senhora hespanhola:

- Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico...

N'esse momento, alguns dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escossez. Outros affirmavam que fôra Jupiter. E

no silencio que se fez, de lassidão e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins da banda, a valsa de madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna - onde as senhoras continuavam debruçadas no parapeito, á espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressões, dizendo que tudo aquillo era uma intrujice.

E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueñas e do coração d'Espronceda.

O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos Olivaes -

e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do Rei d'Hespanha, homem de todos os chics. Elle, muito á vontade, um pouco poseur, com um simples veston de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Não se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n'um jantar, em casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais intimo - e Craft quiz que fossem regar aquella flor d'amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.

O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nú, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam á pressa as fatias de sandwiches com as mãos humidas da espuma da cerveja.

Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d'um dos barrotes que especavam os degraus da tribuna, n'um grupo animado, com copos de champagne na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo do braço enrolada a bandeira vermelha de Starter, e o commissario imberbe, com o chapéo branco cada vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho já molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford, rompeu

para elle, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu vozeirão:

- Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da península, e rapaz cá dos nossos!... Hip hip, hurrah!

Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do starter. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas - em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas.

- Muito gosto em conhecer...

- Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou o commissario. Cá a rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto cá é a confraria, e todo o resto é chinfrinada!

E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia mais sangue á face:

- Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da patria! a melhor mão de redea...

Hip, hip, hurrah...

- Hip, hip, hip... Hurrah!

E foi ainda a voz do starter que deu o hurrah mais vibrante e mais enthusiasta.

Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gritando já de fóra, com o olho acceso:

- Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar no liquido! E você, oh lá de baixo, o patrão, sô Manuel, mande vir esse gelo... Está a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, vá você, rebente! Irra!

No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradição de jantarem juntos, sempre que se encontravam.

- Olá! o general por aqui! exclamou Craft.

Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentão, entalado n'uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braço.

Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford...

- E que me diz você a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se para Carlos.

Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o Jockey-Club rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d'um divertimento que não estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não, então historias!... Em Inglaterra e em França, sim! Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... Então já viam!

E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do apuramento das raças, e da remonta, - o outro ergueu os hombros, com indignação:

- Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura a raça para a remonta da cavallaria?... Ora vá lá montar o exercito com cavallos de corridas!... Em serviço o que se quer não é o cavallo que corra mais, é o cavallo que aguente mais... O resto é uma historia...

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