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- Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas lá a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, não me dás licções...

Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o tão innofensivo, tão insignificante, com o seu ar bochechudo, e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe o braço, teve duas palavras amaveis.

- Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não te quiz fazer zangar... É para teu bem... O

que eu receava é que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscríção...

E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se ao braço do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante chic. Não, elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade...

- Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito...

E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia não havia elle de «perder a cousa».

Aquillo ia com todas as regras. Lá n'isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie já a tinha na mão; já lhe dera duas libras.

- Isto de mais a mais é uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, é intima d'elle desde pequena, tratam-se até por tu...

- Que tio?

- Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães. Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta...

- Ah sim, o communista...

- Qual communista, até tem carruagem!

Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar Carlos.

- Ámanhã vou jantar com elles, e vão tambem dois brazileiros, amigos d'elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um é chic, é da Legação do Brazil em Londres. De maneira que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes não me disse nada; mas que te parece, achas que vá de casaca?...

- Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.

O Damaso olhou-o, pensativo.

- A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.

- O habito de Christo... Sim, põe o habito de Christo ao pescoço, e põe a rosa na botoeira.

- Será talvez de mais, Carlos!

- Não, fica bem ao teu typo.

Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no ultimo aperto de mão a Carlos:

- Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o á noite á brazileira... Entro no Hotel embrulhado n'um capote, e appareço-lhes de repente na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar: Alerta, marinari,

Il vento cangia...

Chic a valer!... Good bye!

Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fóra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d'agoa, que a cada instante batiam agrestemente o jardim.

Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominó de já setim negro com um grande laço azul-claro.

Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chavena de chá preto que elle estava bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e de gravata branca.

De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento.

- Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje é o dia das surprezas...

Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir - quando em baixo vibrou outro repique brutal, d'uma impaciencia phrenetica.

Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e ahi, á meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos côr de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite, apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha, com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um manto escarlate esvoaçou - e o Ega estava diante d'elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles!

Carlos apenas poude dizer bravo - o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de caracterisação que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas - sentia-se bem a afflicção em que vinha, com os olhos injectados,

perdido, n'uma terrivel pallidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro.

Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.

Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos, n'uma voz rouca e d'agonia:

- Tu sabes o que me succedeu, Carlos?

Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d'elle, devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.

- Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforço e quasi balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já estavam duas ou tres pessoas...

Elle vem direito a mim, e diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já no meio da rua... Já no meio da rua senão, diante d'esta gente, corro-o a pontapés!» E eu, Carlos...

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