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E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante ingleza havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...

- Imaginámos ao principio que era uma constipação passageira; mas hontem á tarde esteva peor, e estou agora impaciente que a veja...

Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pendia ao lado do piano. O

seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeça, deixava uma pennugem d'ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do pescoço. Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d'estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d'uma belleza mais nobre, e quasi inaccesivel; e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tão francamente, com uma tão clara adoração, como quando a encontrava na rua.

- Que linda cadellinha v. exc.ª tem, minha senhora disse elle, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já n'estas palavras simples, ditas a sorrir, um accento de ternura.

Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava uma doçura mais mimosa ás suas feições sérias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:

- Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!

Niniche appareceu a hocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava Niniche...

N'esse instante a criada entrou - a rapariga magra e sardenta, d'olhar petulante, que Carlos vira já no Hotel Central.

- Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu não o acompanho, porque ella é tão timida, tem tanto escrupulo em incommodar, que diante de mim é capaz de negar tudo, dizer que não tem nada...

- Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n'um encanto de tudo.

E pareceu-lhe então que no olhar d'ella alguma coisa brilhára, fugira para elle, de mais vivo, de mais dôce.

Com o seu chapéo na mão, pisando familiarmente aquelle corredor intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria d'uma posse. Por uma porta meio aberta pôde entrevêr uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas d'aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d'estas coisas tão simples, tão banaes, evidencias de vida delicada.

Melanie correu um reposteiro de linho crú, fêl-o entrar n'um quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n'um leitosinho de ferro, sentada, com um laço de sêda azul ao pescoço, e os bandós tão lisos, tão acamados pela escova, como se fosse sahir n'um domingo para a capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes estavam escrupulosamente dobrados, junto d'um copo com duas bellas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da familia real d'Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria a commoda, até ás suas botinas bem ngraxadas, classificadas, perfiladas n'uma prateleira de pinho.

Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinha nada. Era a senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forcára a metter-se na cama... E para ella era um desgosto vêr-se alli ociosa, inutil, agora que Madame estava tão só, n'uma casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar?

Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma prisão para Madame!...

Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda n'um rubor afficto, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era absolutamente necessario... Sim, decerto, era neccssario...

Achou-lhe o pulmão direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhva, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua familia. Ella contou que era de York, filha de um clergyman, e tinha quatorze irmãos: os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram d'uma robustez de athletas. Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.

Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenças de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. O papá, já muito velho, morrera do couce de uma egua.

Carlos, no entanto, pó de pé, com o chapéo na mão, continuava a observal-a, reflectindo. Então, de repente, sem motivo, ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas tímidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mão.

- Oh! Thank you sir! murmurou ella, commovida de todo.

Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flôres pousada ao lado n'uma cadeira, e o regáço cheio de cravos.

Uma bella restea de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche, deitada alli, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhã de sol, a walsa da Madame Angot. Pelo andar de cima tinham recomeçado as correrias de crianças brincando.

- Então? exclamou ella, voltando-se logo, com um mólho de cravos na mão.

Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira, com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela...

- Certamente! E ha de tomar algum remedio, não é verdade?

Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir uma secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E estes cuidados perturbavam Carlos como caricias.

- Oh minha senhora!... murmurava elle, um lapis basta...

Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida n'esses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos d'ella - um sinete d'agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monogramma de prata ao lado d'uma taçasinha de Saxe cheia d'estaropilhas; e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo calára-se, por cima do tecto já não cavallavam as crianças. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.

- Que bonitas flôres v. exc.ª tem, minha senhora! disse elle, voltando a cabeça, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita.

De pé, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India, ella arranjava folhas em volta de duas rosas.

- Dão frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas flôres. Não ha nada que se compare ás flôres de França... Pois não é verdade?

Elle não respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doçura de ficar alli eternamente n'aquella sala de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silencio, a vêl-a pôr folhas verdes em torno de pés de rosa!

- Em Cintra ha lindas flôres, murmurou por fim.

- Oh, Cintra é um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal só por causa de Cintra.

N'esse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sêda preta, uma onda negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande boneca. Ao vêr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para elle, toda encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha em camisa.

- Não conheces? perguntou-lhe a mãi, indo sentar-se outra vez diante do seu cesto de flôres.

Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d'uma linda côr. E assim, toda d'alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu dôce mimo de fórma, a sua graça ligeira, os seus grandes olhos cheios d'azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendida para renovar o antigo conhecimento - ella ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.

Depois quiz apertar a mão á sua velha amiga Cri-cri. E então, de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr.

- É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde é que está o robe-de-chambre?

- Vejam esta desarranjada murmurava a mãi olhando-a com um sorriso lento e terno.

Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas... pois não é verdade, snr. Carlos da Maia?

Elle, ainda com a sua receita na mão, sorria tambem, sem dizer nada, todo no enternecimento d'aquella intimidade em que se seutia penetrar dôcemente.

A pequena então veio encostar-se à mãi, roçando-se pelo seu braço, com uma vozinha languida, lenta, e de mimo:

- Anda, dize... Não sejas má... Anda... Onde está o robe-de-chambre? Dize...

Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço de seda branca que lhe pendia no alto cabello. Depois ficou mais séria:

- Está bem, está quieta... Tu sabes que não sou eu que trata dos arranjos da Cri-cri.

Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie.

E Rosa obedeceu logo, séria também, comprimentando agora Carlos ao passar, com um arzinho senhoril:

- Bonjour, Monsieur...

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