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Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.

- Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de morrer ámanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver uma garrafa de Bourgonhe...

D'ahi a pouco estavam á mesa - n'aquella bella sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaes representando bocados solitarios d'arvoredo, as severas faenças da Persia, e a sua original chaminé flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com veneração, duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.

Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin.

Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocês chegaram, estava a lêr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra...

- Que é aquillo, além, n'aquella lata? perguntou Ega, com uma voz moribunda.

Um pâté de foie-gras. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.

- Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.

- Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Não te romantises. Tu o que tens é fome. Todas as tuas idéas esta noite se ressentem da debilidade!

Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitação do seu trage de Satanaz nem jantára, contando ceiar bem em casa do outro... Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente foie-gras...

E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú, uma porção immensa de lingua d'Oxford, duas vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle só bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin.

O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era vaidoso, e de rancores longos! N'um convento tambem não a fechava, sendo judia...

- Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade. Ega, já com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle então entrava n'um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear uma ordem para elle!

Craft lembrou a Santa Blague!

- Vocês não teem coração, exclamou Ega, enchendo outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava aquella mulher!

Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos melhores de toda aquella paixão, - porque poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias vaidosas. Começou por contar o encontro com ella na Foz - emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em que ella se assignava Violetta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas,

emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes de mãos á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados entre as lapides funebres...

- Muito curioso! dizia o Craft.

Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft fôra buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.

O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeçou as confidencias, contou a volta a Lisboa, a Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá com ella no calor d'um ninho d'amor...

Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento a cabeça entre os punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer!

- Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocês um peito...

- Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu estás bebado, miseravel!

Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado á meza.

Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido tudo, até agua raz. Nunca! Não podia...

- Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu verás... E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta... Ora ahi tens. Dá cá a garrafa.

Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle, com a face livida.

- Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa, ou te metto uma bala no coração... Não, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha!

De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d'ahi sobre o chão, como um fardo.

- Terra! disse tranquillamente Craft.

Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da Ega. E emquanto o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz, não cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mãos de Carlos, balbuciando:

- Rachelsinha!... Racaqué, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?...

Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, já clareava a alvorada.

Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o nariz dentro dos lençoes.

Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lençoes até ao queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolação de deixar aquelles fofos colxões, a paz confortavel da quinta - para ir affrontar a Lisboa toda a sorte de cousas amargas.

- Está frio lá fóra? perguntou elle melancholicamente.

- Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se lá fôr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...

Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só achou o gibão de Satanaz.

Chamaram o criado, que trouxe umas calças de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez, voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:

- Vamos a isso!

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