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Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podiamos deitar, que elles não precisavam nada, e que ámanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado, até me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.

A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coça!...

Se um covarde d'aquelles não merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!... Tudo uma corja!

- E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como elle descobriu?...

- Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos na cabeça.

Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!

- Estranho, estranho! murmurava Craft.

Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.

- Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr.

Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha alto.

Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo até á roda das saias, com os olhos faiscantes.

- Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham.

A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:

- Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle.

Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mão tremula.

Então Carlos enojado, cançado d'aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...

- Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.

De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se lá outra vez.

- Você não está farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.

- Não. Acho um estudo curioso.

Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo - quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia partira.

- Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?

E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.

No André tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera para os senhores se entreterem.

De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.

- Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado descobriu!...

- A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel.

Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.

Ega erguera-se:

- Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal?

Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel ía vêl-a de vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?... Além d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e punha um waterproof...

Craft cumprimentou.

- É brilhante! Parece de Scribe.

- Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...

- A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... Ás vezes mesmo em casa d'ella.

- Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se.

- Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco libras.

O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio accommodaram-se á meza.

Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir, receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce.

Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde ardiam as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel: - e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O

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