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- Olha os Gouvarinhos!

Carlos deu um salto tambem. O conde, de côco de viagem, de paletot alvadio, sem se apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando com um empregado superior da estação, agaloado de ouro, que se encarregára da chapeleira de papelão de s. exc.ª E a condessa, com um rico guarda-pó de foulard côr de castanho, um véo cinzento que lhe cobria a face e o chapéo, seguia atraz, com a criada escosseza, trazendo na mão um ramo de rosas.

Carlos correu para elles, foi todo um assombro.

- Por aqui, Maia?

- De viagem, conde?

É verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos annos do papá... Resolução da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.

- Então temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia?

Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão ao pobre Damaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.

Debruçado da portinhola, com as mãos de fóra calçadas de negro, o pobre Damaso cstava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom Gouvarinho não quiz deixar de lhe ir dar logo o seu shake-hands e o seu pezame.

Sósinho n'esse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:

- Que ferro!

- Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que fuzilou através do véo. Tudo tão bem arranjado, e á ultima hora teima em vir!...

Carlos acompanhou-os até ao reservado, n'um outro wagon que se estivera mettendo de novo para s. exc.ª A condessa tomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde, n'um tom de polidez acida, a aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais força na almofada; e um duro olhar de colera passou entre ambos.

Carlos, embaraçado, perguntava:

- Então vão com demora?

O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:

- Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.

- Tres dias, o mais, replicou ella n'uma voz fria e afiada como uma navalha.

O conde não respondeu, lívido.

Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a plataforma. O

apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n'um ruido secco de freios retesados, começou a rolar, com gente ás portinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para

um ultimo aperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um beijo, o Damaso gritou saudades para o Ramalhete. O

compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite...

Carlos, só, dentro do coupé, voltando á Baixa, sentia uma alegria triumphante com aquella partida da condessa, e a inesperada jornada do Damaso. Era como uma dispersão providencial de todos os importunos: e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidão - com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

No caes do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio passar diante das janellas na rua de S. Francisco. Só pôde vêr uma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o serão calmo que ella estava passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ella lia, e as partituras que tinha sobre o piano; e as flôres que espalhavam alli o seu aroma vira-as elle arranjar n'essa manhã. Poria ella um instante o seu pensamento n'elle? Decerto; a doença em casa forçava-a a lembrar as horas do remedio, as explicações que elle dera, e o som da sua voz; e fallando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrellada, devagar, ruminando a doçura d'aquelle grande amor.

Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplendida, perfeita, «a visita à ingleza».

Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como n'uma acção triumphal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, tres folhas de papel d'onde cahia sempre alguma pequena flôr meio murcha. Elle deixava ficar a flôr no tapete: e mal podia dizer o que havia n'aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que, tres dias depois d'ella chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson, tivera uma apoplexia. Ella lá estava, d'enfermeira. Depois, levando duas ou tres bellas flôres do jardim embrulhadas n'um papel de sêda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupé -

porque o tempo mudára, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.

Á porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido. Niniche corria de dentro, a pular d'amizade; elle erguia-a nos braços para a beijar. Esperava um instante na sala, de pé, saudando com o olhar os moveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano a musica que ella tocára essa manhã, ou o livro que deixára interrompido, com a faca de marfim entre as folhas.

Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d'ouro tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ás vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivella era cravejada de pedras, avivavam este traje sobrio, quasi severo, que pareria a Carlos o mais bello, e como uma expressão do seu espirito.

Começavam por fallar de miss Sarah, d'aquelle tempo agreste e humido que lhe era tão desfavoravel. Conversando, ainda de pé, ella dava aqui e além um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira que não estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompor constantemente, a symetria das coisas; - e, machinalmente, ao passar, sacudia a superficie de moveis já perfeitamente espanejados com as magnificas rendas do seu lenço.

Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarello, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a caricia d'esse intimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir do movimento das suas saias. Ella ás vezes abria familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velho sofá: era alli que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri.

Encontravam-na vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou então, ao canto do sofá, com os pésinhos cruzados, immovel, perdida na admiração d'algum livro d'estampas aberto sobre os joelhos. Ella corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda flôr.

No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pés do leito branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando a cada instante se o lenço de sêda lhe cobria correctamente o pescoço, affirmava que estava boa. Carlos gracejava com ella, provando-lhe que n'esse feio tempo d'inverno, a felicidade era estar alli na cama, com bons cuidados em redor, alguns romances patheticos, e appetitosa dieta portugueza. Ella voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava

- Oh yes, I am very comfortable!

E enternecia-se.

Logo nos primeiros dias, ao voltar á sala, ria Eduarda tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retomára muito naturalmente o seu bordado como na presença familiar de um velho amigo. Com que felicidade profunda elle viu desdobrar-se essa talagarça! Devia ser um faisão de plumagens rutilantes: mas por ora só estava bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de primavera, coberto de florzinhas brancas, como n'um pomar da Normandia.

Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais velha, a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve. Entre elles ficava a mesa de costura com as Illustrações ou algum jornal de modas; ás vezes, um instante calado, elle folheava as gravuras, em quanto as lindas mãos de Maria, com brilhos de joias, iam puxando os fios de lã. Aos pés d'ella Niniche dormitava, espreitando-os a espaços, através das repas do focinho, com o seu bello olho grave e negro. E n'esses escuros dias de chuva, cheios de friagem lá fóra e do rumor das goteiras, aquelle canto da janella, com a paz do vagaroso trabalho na talagarça, as vozes lentas e amigas, e ás vezes um dôce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso...

Mas no que diziam não havia intimidades. Fallavam de Paris e do seu encanto, de Londres onde ella estivera durante quatro lugubres mezes de inverno, da Italia que era o seu sonho vêr, de livros, de coisas d'arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir tudo de pó d'arroz, mesmo as feridas do coração.

Apesar de educada n'um convento severo d'Orleans, lêra Michelet e lêra Renan. De resto não era catholica praticante; as igrejas apenas a attrahiam pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as luzes, ou os lindos mezes de Maria, em França, na doçura das flôres de maio. Tinha um pensar muito recto e muito são - com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que soffre e é fraco. Assim gostava da Republica por lhe parecer o regimen em que ha mais solicitude pelos humildes. Carlos provava-lhe rindo que ella era socialista.

- Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa, comtanto que não haja gente que tenha fome!

Mas era isso possivel? Já Jesus, mesmo, que tinha tão dôces illusões, declarára que pobres sempre os haveria...

- Jesus viveu ha muito tempo, Jesus não sabia tudo... Hoje sabe-se mais, os senhores sabem muito mais... É necessario arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que não haja miseria. Em Londres, as vezes, por aquellas grandes neves, há criancinhas pelos portaes a tiritar, a gemer de fome... É um horror! E em Paris então! É que se não vê senão o boulevard; mas quanta pobreza, quanta necessidade...

Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d'estas palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma - como n'um só sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.

Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ás suas caridades, pedindo-lhe para ir ver a irmã da sua engommadeira que tinha rheumatismo, e o filho da snr.ª Augusta, a velha do patamar, que estava tisico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de acções religiosas. E n'estas piedades achava-lhe semelhanças com o avô. Como Affonso, todo o soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da Praça da Figueira, quasi com idéas de vingança, por ter visto nas tendas dos gallinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante dias as torturas da immobilidade e a anciedade da fome.

Carlos levava estas bellas coleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que era membro da Sociedade protectora dos animaes. O marquez, indignado tambem, jurava justiça, fallava em cadêas, em costa d'Africa... E Carlos, commovido, ficava a pensar quanta larga e distante influencia póde ter, mesmo isolado de tudo, um coração que é justo.

Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua petulancia, os olhos bugalhudos, as perguntas nescias. V. exc.ª acha Nice elegante? V. exc.ª prefere a capella de S. João Baptista a Notre-Dame?...

- E então a insistencia de fallar de pessoas que eu não conheço! A snr.ª condessa de Gouvarinho, e os chás da snr.ª condessa de Gouvarinho, e a frisa da snr.ª condessa de Gouvarinho, e a preferencia que a snr.ª condessa de Gouvarinho tem por elle...! E isto horas! Eu ás vezes tinha medo de adormecer...

Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da Gouvarinho?

Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto não sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo d'entre elles esse nome, começou a fallar de Mr.

Are sens