sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a veria! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo - e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.
Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe, - escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.
- Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava estas cousas com um ar cançado e doente.
Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.
Ah, elle sabia-o bem! Tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica, e fosse independente.
Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos - que fôra excellente - contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.
Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n'essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as Memorias d'um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos não perturbou esta radiante illusão.
Mas quando Ega, antes de partir, foi a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens - e elle seria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.
Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações.
A mãe do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi uma divertida carreira de faia.
Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas?
Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente. Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam
«cousas contra a natureza», e que o pagem não era só para servir á meza... Nauseado até á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor romantico:
- Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro!
Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:
- Má estreia, filho, pessima estreia!
E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem comsigo: - Pessima estreia!... E nem só a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso, as palavras do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memorias d'um Atomo, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima estreia!
Não, a vida não lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!... Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.
Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.
- Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já visto a pequena...
Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando um recado, faiscando d'impaciencia.
Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro - o primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadellinha no collo.
Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes d'elle partir para o Brazil... Não podia mais, precisava ouvir a voz d'ella, vêr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto.
Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos. Começou por encontrar o conde, que lhe travou do braço, arrastou-o á rua de S. Marçal, installou-o n'uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao Jornal do Commercio sobre a situação dos partidos em Portugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de croquet. Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa noite, ella fallou d'um livro de Tennyson, que não lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o levar ao outro dia, de manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam já a voz, as duas cadeias estavam mais juntas - quando o escudeiro annunciou a sr.ª D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria, a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia de sympathia por todos os peccados - e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular á condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d'essas tardes tomar chá, e fallar de Tennyson.
Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de
«ferro». O telhudo do Castro Gomes mudára de idéa, já não ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão! De sorte que estava tudo estragado...
Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação ao Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquê, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por meio do Damaso. E
foi-se vestindo em silencio.
Damaso no entanto maldizia a sua chance:
- E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasião. Mas que diabo queres tu, assim?...
Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida d'aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles não se davam bem. Na vespera houvera de certo questão. Quando elle entrara, ella estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d'hora...
- Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar á fava.
Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ás vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d'estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.
- Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos pôr o chapeu.
Ia tomar chá com a Gouvarinho.
- Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca! Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:
- Vem, fazes-me até favor...
A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.
- Ha que tempos que não damos assim um passeio juntos, disse Damaso.
- Tu andas lá mettido com estrangeiros!...