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Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada. Depois, á porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.ª condessa recebia, resolveu subitamente não entrar.

Não, não entrava. Estava muito estupido, incapaz de achar uma palavra...

- Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos diante do portão. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia de mandar pela visita á pequena... Eu disse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os.

Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!

- Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar ámanhã! exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mão ao seu amigo.

Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir chá. A sala, forrada d'um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas havia cestos de flôres. No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na mão. A condessa, ao estender os dedos a Carlos, ficara tão côr de rosa - como a seda acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pé d'um velador de pau santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que não era possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde...

O conde ainda não apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrucção Publica.

Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos. As pobres creanças succumbiam verdadeiramente á quantidade exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Joãosinho, andava tão pallido e tão desfigurado, que ella ás vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades que punham, só para poder deitar RR... Ao pequeno d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era o sabão, porque lavava o sabão?...

A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominação. O marido d'ella - continuava a dama de preto - ficara tão desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!... Não havia verdadeiramente senão uma cousa digna de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creança com botanica, astronomia, physica... Para que?

Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno d'ella, agora, tinha lições de chimica... Que absurdo! Era o que o pae dizia - para que, se elle o não queria para boticario?

Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.

Carlos ficou só com a sr.ª condessa, que reoccupara a sua cadeira côr de rosa.

Immediatamente ella perguntou pelo Ega.

- Coitado, lá está para Celorico.

Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tão feia «lá está para Celorico»

Não, não queria... Coitado do Ega! Merecia uma melhor oração funebre. Celorico era horrivel para um fim de romance...

- De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: lá está para Jerusalem!

N'esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da Instrucção, levou as mãos á cabeça como lamentando um tão feio desperdicio de tempo, e não se quiz demorar. Não, nem mesmo o excellente chá da sr.ª condessa o tentava. A verdade era que estava tão abandonado da graça de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara, não para vêr a sr.ª condessa – mas simplesmente fallar ao conde. Então ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma tão rude sinceridade de montanhez não fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia, quis saber quando o principe de Sta. Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.ª condessa indignou-se. Não, era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante d'ella, - um homem que fallava tanto da sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera jámais um prato de chou-crôute!

Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua sala de jantar para dar á sr.ª condessa uma festa, que havia de ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E

abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.

- Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse a condessa.

- Muito alegre, disse Carlos.

Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, áquella hora ella já não recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella. Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha n'essa tarde uma toilette exaggerada, d'um tom de folha de outono amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.

- Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.

- Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e não imagina... Era d'uma belleza de idyllio.

E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra, n'aquella sala.

Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido, fallando de algumas canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novidades frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia - The pale star.

Não, Carlos não conhecia. Mas todas essas canções inglezas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito miss. E trata-se sempre d'um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros...

Então a condessa leu alto a letra da Pale star. E era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo sob as arvores...

- É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre delicioso.

Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.

- Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.

Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente...

A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...

- Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; - e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o sr. Conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.

D'ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella, diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no sophá - e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenço de seda da India.

Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhã, na camara, se lembrara d'elle...

- Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.

- O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.

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