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Guimarães, o famoso tio do Damaso, o amigo de Gambetta, o influente da Republica...

- O Damaso tem-me dito que v. exc.ª o conhece muito...

Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.

- Mr. Guimarães?... Sim, conheço muito... Ultimamente viamo-nos menos, mas elle era muito amigo da mamã.

E depois d'um silencio, d'um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:

- Pobre Guimarães, coitado! A sua influencia na Republica é traduzir noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para o Rappel, que d'isso é que vive... Se é amigo de Gambetta, não sei, Gambetta tem amigos tão extraordinarios... Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grutesco, uma especie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Damaso, que é rico, se tivesse decencia, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente.

- Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que falla o Damaso...?

Ella encolheu mudamente os hombros: e Carlos sentiu pelo Damaso um asco intoleravel.

Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do avô. E durante essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia picando a talagarça, elle contou-lhe a sua vida passada, os planos de

carreira, os amigos, e as viagens... Agora ella conhecia a paizagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifacio, as excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos lhe explicasse longamente a idéa do seu livro A medicina antiga e moderna. Approvou, com sympathia, que elle pintasse as figuras dos grandes medicos, bemfeitores da humanidade. Porque se glorificariam só guerreiros e fortes? A vida salva a uma criança parecia-lhe coisa bem mais bella que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, cahiam no coração de Carlos e ficavam lá muito tempo, palpitando e brilhando...

Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as confissões; - e ainda não sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que habitava em Paris.

Não lhe ouvira murmurar jamais o nome do marido, nem fallar d'um amigo ou d'uma alegria da sua casa. Parecia não ter em França, onde vivia, nem interesses, nem lar; - e era realmente como a deusa que elle ideára, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua nuvem d'oiro. para vir ter alli, n'aquelle andar alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.

Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham falado d'affeições. Ella acreditava candidamente que podesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura, immaterial, feita da concordancia amavel de dois espiritos delicados. Carlos jurou que tambem tinha fé n'essas beilas uniões, todas d'estima, rodas de razão comtanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as d'um grande encanto - e não lhes diminuia a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco diffusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos, ficára subtilmente estabelecido que entre elles só deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos.

Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; comtanto que visse o seu rosto, ligeiramente córado, baixar-se, com a lenta attracção d'uma caricia, sobre as flôres que lhe trazia; comtanto que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento d'ella o ficava seguindo sympathicamente através do seu dia, mal elle deixava aquella adorada saia de reps vermelho – o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.

Não pensava mesmo que aquella ideal amizade, d'intenção casta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braços ardentes d'homem. No deslumbramento que o tomára ao vêr-se de repente admittido a uma intimidade que julgára impenetravel, - os seus desejos desappareciam: longe d'ella, ás vezes, ainda ousavam ir temerariamente até á esperança d'um beijo, ou d'uma fugitiva caricia com a ponta dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olhar negro, cahia em devoção, e julgaria um ultraje bestial roçar sequer as prégas do seu vestido.

Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si mil coisas finas, novas, d'uma tocante frescura. Nunca imaginára que houvesse tanta felicidade em olhar para as estrellas quando o céo está limpo; ou em descer de manhã ao jardim para escolher uma rosa mais aberta. Tinha na alma um constante sorriso - que os seus labios repetiam. O

marquez achava-lhe o ar baboso e abençoador...

Ás vezes, passeando só no seu quarto, perguntara a si mesmo onde o levaria aquelle grande amor. Não sabia. Tinha diante de si os tres mezes em que ella estaria em Lisboa, e em que ninguem mais senão elle occuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O

marido andava longe, separado por legoas de mar incerto. Depois elle era rico, e o mundo era largo...

Conservara sempre as suas grandes idéas de trabalho, querendo que no seu dia só houvesse horas nobres, - e que aquellas que não pertenciam ás puras felicidades do amor, pertencessem ás alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratorio, ajuntava algumas linhas ao seu manuscripto. Mas antes da visita á rua de S. Francisco não podia disciplinar o espirito, inquieto, n'um tumulto d'esperanças; e depois de voltar de lá, passava o dia a recapitular o que ella dissera, o que elle respondera, os seus gestos, a graça de certo sorriso... Fumava então cigarrettes, lia os poetas.

Todas as noites no escriptorio d'Affonso se formava a partida de whist. O marquez batia-se ao dominó com o Taveira, enfronhados ambos n'aquelle vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias. Depois das corridas, o secretario de Steinbroken começára a vir ao Ramalhete; mas era um inutil, nem cantava sequer como o seu chefe as bailadas da Filandia; cabido no fundo d'uma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente os seus longos bigodes tristes.

O amigo que Carlos gostava de vêr entrar era o Cruges - que vinha da rua de S.

Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia rodas as manhãs ao predio vêr a «miss ingleza»: e muitas vezes, innocentemente, ignorando o interesse de coração com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da visinha...

- A visinha lá ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execução, tem expressão, a visinha... Ha alli estofo... E entende o seu Choppin.

Se elle não apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscal-o: entravam no Gremio, fumavam um charuto n'alguma sala isolada, fallando da visinha: Cruges achava-lhe «um verdadeiro typo de grande dame».

Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha vêr (como elle dizia a faiscar d'ironia) o que se passava «no paiz do snr. Gambetta». Parecera remoçar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade d'esperança nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa. Lá estava no Porto, nos seus deveres de filha...

- E seu sogro?

O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:

- Mal.

Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando Niniche que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:

- É o snr. Damaso!...

Ella olhou o Romão, surprehendida d'aquelles modos, e quasi escandalisada.

- Pois bem, mande entrar!

E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flôr ao peito, gorducho, risonho, familiar, com o chapeu na mão, trazendo dependurado por um barbante um grande embrulho de papel pardo... Mas ao vêr Carlos alli, intimamente, de cadellinha no collo,

estacou assombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Emfim desembaraçou as mãos, veio comprimentar Maria Eduarda quasi de leve, - e voltando-se logo para Carlos, de braços abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente:

- Então tu aqui, homem? Isto é que é uma surpreza! Ora quem me diria!... Eu estava mais longe...

Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quis saber como elle tinha chegado.

- Perfeitamente, minha senhora... Um bocado cançado, como é natural... Venho direitinho de Penafiel... Como v. exc.ª vê – e mostrou o seu luto pesado - acabo de passar por um grande desgosto.

Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso pousára os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de côr, cheio de sangue; e como cortára a barba (que havia mezes deixára crescer para imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nedio. As côxas roliças estalavam-lhe de gordura dentro da calça de casimira preta.

- E então, perguntou Maria Eduarda, temol-o por cá algum tempo?

Elle deu um puxãosinho á cadeira, mais para junto d'ella, e outra vez risonho:

- Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero dizer é que ha de custar a arrancar-me d'aqui!

Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pêllos da Niniche. E houve então um pequeno silencio. Maria Eduarda retomára o bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao bigode, estendeu a mão para acariciar tambem Niniche sobre os joelhos de Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.

- C'est moi Niniche! dizia Damaso, recuando a cadeira. C'est moi, ami... Alors, Niniche...

Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente Niniche. E, aninhada de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e com rancor.

- Já me não conhece, dizia elle embaçado, é curioso...

- Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria. Mas não sei o que o snr.

Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. É sempre este escandalo.

Damaso balbuciava, escarlate:

- Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre caricias...

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