- Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande palavra!
- Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo...
- Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste tu pela civilisação?...
- Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou de véo azul no chapéo!
Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n'uma salva. O velho, sorrindo ainda das idéas de Damaso sobre a civilisação, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio.
- Isto é que é ter gosto, isto é que é comprehender as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços para Carlos, quando o velho desappareceu atravez do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino, é podre de chic!...
- Deixa lá o chic do avô... Anda cá, que te quero dizer uma cousa.
Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá o Damaso, e disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle já fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de flores. E agora só restava que Damaso amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro Gomes...
- Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás com furor de a conhecer!
Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasião para elle!...
Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as curiosidades ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, zás, ia para a quinta passear com ella... A calhar!
- Pois vou ámanhã já fallar-lhes... Estou convencido que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac!
- E vens dizer-me se acceitaram ou não...
- Venho dizer-te... Tu vaes gostar d'ella; tem lido muito, entende tambem de litteratura; e olha que ás vezes a conversar atrapalha...
O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a porta envidraçada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal...
- E é isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente do braço.
- Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se d'elle e olhando-o com ferocidade. E você é-o no sentimento. E o Craft é-o na respeitabilidade. E o Damasosinho é-o na tolice. Em Portugal é tudo Pieguice e Companhia!
Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na ante-camara, deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto, que lhe beijava a mão, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos d'agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquez instinctivamente levou a mão á algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: ellas desciam, encolhidas, abençoando-o, n'um murmurio de soluços; e elle voltando-se para Carlos, quasi se desculpou n'uma voz que ainda tremia:
- Sempre estes peditorios... Caso bem triste todavia... E o que é peior é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquez.
- Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez commovido.
No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito molas, levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se installara no Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em que para o lado do Hyppodromo estavam já estalando foguetes. Um dos criados desceu a comprar o bilhete de pesagem para o Craft, n'uma tosca guarita de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia um homemsinho de grandes barbas grisalhas. Era um dia já quente, azul ferrete, com um d'esses rutilantes soes de festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baça do ar, poem fulgores d'espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, d'um vivo monotono e implacavel, que na lentidão das horas de verão cança a alma, e vagamente entristece. No largo dos Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus esperava, desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho ao collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das corridas que ninguem comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se com a
sua bilha á sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam a passo aquella solidão. E a distancia, sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente.
No entanto o trintanario continuava debruçado na guarita, sem poder arranjar lá dentro o troco d'uma libra. Foi necessario Craft saltar da almofada, ir lá parlamentar - emquanto Carlos, impaciente, raspando com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava no largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os labios. É que toda aquella semana, desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos Olivaes, fôra desconsoladora. O
Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, não procurara o Damaso. Os dias tinham passado, vazios; não se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a esperava nas corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n'o de melancolia e de malestar.
Uma caleche de praça passou, com dous sujeitos de flores ao peito, acabando de calçar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas propheticas.
Para além do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras debruçadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a cavallo, atravancavam a rua.
Á entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n'um muro de quintarola, o phaeton teve de parar atráz do dog-cart do homem gordo - que não podia tambem avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um policia. Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra, que era do Jockey Club, tinha-lhe dito que elle podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lho disséra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O
policia bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem - quando, trotando na grande horsa, um municipal de punho alçado correu, gritou, injuriou o cavalleiro gordo, fez rodar para óra a caleche. Outro municipal entrometteu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E
atravez do reboliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a Traviata.
O phaeton entrou - atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de furia, voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal.
- Tudo isto está arranjado com decencia, murmurou Craft.
Diante d'elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações da cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.
No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, no brilho do sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, d'onde sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d'um vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro. Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição, erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques d'arraial. A da esquerda vasia, por pintar, mostrava á luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fóra d'azul claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas
permanecia deserto e desconsolado, d'um tom alvadio de madeira, que abafava as côres alegres dos raros vestidos de verão. Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio caía do ceu faiscante.
Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia mais soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem triste que estava á entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro d'um enorme collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava até aos joelhos - Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio.
Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira á porta do buffete onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos amarellos ao peito, polainas brancas, - e queria animar as corridas. Já vira a Mist, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela Mist. Que cabeça d'animal, meninos, que finura de pernas!...
- Palavra que me enthusiasmou! E está decidido, um dia não são dias, é necessario animar isto! Aposto trez mil réis. Quer você Craft?
- Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vêr o aspecto geral.
No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia só homens, a gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte á vontade, com jaquetões claros, e de chapéo côco; outros mais em estilo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraçados e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela relva, entre leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um cavalheiro, parado, de mãos atraz das costas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preço dos bilhetes, achando aquillo «uma semsaboria de rachar.»
Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por soldados: e junto á corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente, com as carruagens pelo meio, sem um rumor, n'uma pasmaceira tristonha, sob o peso do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava agua fresca. Lá ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tão azul como o ceu, n'uma pulverisação fina de luz.