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Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona, com um antigo volume da Illustração franceza aberto sobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, d'olho vivo, e cabello encarapinhado. O velho ficou contentíssimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia.

- Já não tenho phantasia, snr. Affonso da Maia!

Então esclarecêl-o com a tua clara razão, disse o velho rindo. Estamos cá precisando d'ambas as coisas, John.

Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho, rapazinho amavel da visinhança, filho do Vicente, mestre d'obras; o Manoelinho vinha ás vezes animar a solidão d'Affonso - e alli folheavam ambos livros d'estampas e tinham conversas philosophicas. Agora, justamente, estava elle muito embaraçado por não lhe saber explicar como é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas, não era mellido na cadêa...

- Está visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado, com as mãos cruzadas atraz das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadêa!

- Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta bella logica?

Olha, filho, agora que estão aqui estes dois senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu vêr os bonecos alli para cima da mesa... E depois vão sendo horas d'ires lá dentro á Joanna, para merendares.

Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se á mesa com o seu grande volume d'estampas, pensava quanto o avô, com aquelle seu amor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!

Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O quê! Já abandonada?

Quando acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos d'obras-primas?... - Ega queixou-se do paiz, da sua indifferença pela arte. Que espirito original não esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burguezes, amodorrada e crassa, desdenhando a intelligencia, incapaz de se interessar por uma idéa nobre, por uma phrase bem feita?

- Não vale a pena, snr. Affonso da Maia. N'este paiz, no meio d'esta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...

- Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes. É um serviço á alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!

Carlos, muito sério, apoiava o Ega.

- A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, é plantar legumes, emquanto não ha uma revolução que faça subir á superficie alguns dos elementos originaes, fortes, vivos, que isto ainda cerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demittamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de paiz para que não temos elementos, passemos a ser uma fertil e estupida provincia hespanhola, e plantemos mais legumes!

O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inercia.

Terminou por dizer:

- Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!

- O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa, a sua toilette e o seu phaeton, e por esse facto educa o gosto!

O relogio Luiz xv interrompeu-os - lembrando ao Ega que devia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no corredor confessou a Carlos que, antes d'ir ao Hespanhol, queria correr ao Fillon, ao photographo, vêr se podia tirar um bonito retrato.

- Um retrato?

- Uma surpreza que tem d'ir d'aqui a tres dias para Celorico, para o dia d'annos d'uma creaturinha que me adoçou o exilio.

- Oh Ega!

- É horroroso, mas então? É a filha do padre Corrêa, filha conhecida como tal; além d'isso casada com um proprietario rico da visinhança, reaccionario odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar á Religião e á Propriedade...

- Ah! n'esse caso...

- Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos!

Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos vira-a só uma vez, em casa d'ella; e fôra uma meia hora desagradavel, cheia de malestar, com um ou outro beijo frio, e recriminações infindaveis. Ella queixára-se das cartas d'elle, tão raras, tão seccas. Não se puderam entender sobre os planos d'esse verão, ella devendo ir para Cintra onde já alugára casa, Carlos fallando no dever de acompanhar o avô a Santa Olavia. A condessa achava-o distrahido: elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante sobre os seus joelhos e aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze.

Por fim a condessa arrancára-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente n'essa segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em Santarem; - porque tinha sempre o appetite perverso e requintado de o apertar nos braços nús, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com ceremonia. Mas Carlos faltára, - e agora, rodando para casa d'ella, impacientavam-n'o já as queixas que teria de ouvir nos vãos de janella, e as mentiras chôchas que teria de balbuciar...

De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:

- Dize-me uma coisa, se não é um segredo sacrosanto... Quem é essa brazileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.

- Quem te fallou n'isso?

- Foi o Damaso que m'o disse. Isto é, o Damaso que m'o rugiu... Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos n'um sofá do Gremio, e com uma côr d'apoplexia, que elle me contou tudo...

- Tudo o quê?

- Tudo. Que te apresentára a uma brazileira a quem se atirava, e que tu, aproveitando a sua ausencia, te metteras lá, não sahias de lá...

- Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já impaciente.

E Ega, sempre risonho:

- Então «que é a verdade», como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Christo?

- É que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter inspirado uma paixão, como suppõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante ingleza com uma bronchite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está melhor, eu vou vêl-a todos os dias. E

Madame Gomes, que é o nome da senhora, que nem brazileira é, não podendo tolerar o Damaso, como ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a verdade; mas talvez eu arranque as orelhas ao Damaso!

Ega contentou-se em murmurar:

- E ahi está como sc escreve a historia... vá-se lá a gente fiar em Guizot!

Em silencio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cólera contra o Damaso. Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra suave e favoravel em que se abrigára o seu amor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Gremio: o que o Damaso dissera ao Ega, repetil-o-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria d'ahi por diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles do Damaso!

- Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na ante-camara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletot cinzento e capas de sonhem.

A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do busto», vestida de preto, com uma tira de velludo em volta do pescoço picada de tres estrellas de diamantes. Uma cesta de esplendidas flôres quasi enchia a mesa, onde se accumulavam tambem romances inglezes, e uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. Além da boa D. Maria da Cunha e da baroneza d'Alvim, havia uma outra senhora, que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida d'escarlate; e de pé, conversando baixo com o conde, de mãos atraz das costas, um cavalheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da Conceição.

A condessa, um pouco córada, estendeu a Carlos a mão amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr. Sousa Netto já tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um medico distincto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputação, o poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossível; por isso havia tanta immoralidade, tanta relaxação...

- Nunca sabe a gente quem mette em casa.

O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as estrellinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a historia

do seu exilio em Celorico, onde se distrahia compondo sermões para o abbade: o abbade recitava-os; e os sermões, sob uma fórma mystica, eram de facto affirmações revolucionarias que o santo varão lançava com fervor, esmurrando o pulpito... A senhora de

vermelho, sentada defronte, de mãos no regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.

- Imaginei que v. exe.ª tinha ido já para Cintra, veio dizer Carlos á senhora baroneza, sentando-se junto d'ella. V. exc.ª é sempre a primeira...

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