Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica, deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!
D. Maria sorria, olhando com sympatia o poeta. E voltando-se de repente para a senhora hespanhola:
- Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico...
N'esse momento, alguns dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escossez. Outros affirmavam que fôra Jupiter. E
no silencio que se fez, de lassidão e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins da banda, a valsa de madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna - onde as senhoras continuavam debruçadas no parapeito, á espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressões, dizendo que tudo aquillo era uma intrujice.
E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueñas e do coração d'Espronceda.
O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos Olivaes -
e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do Rei d'Hespanha, homem de todos os chics. Elle, muito á vontade, um pouco poseur, com um simples veston de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Não se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n'um jantar, em casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais intimo - e Craft quiz que fossem regar aquella flor d'amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.
O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nú, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam á pressa as fatias de sandwiches com as mãos humidas da espuma da cerveja.
Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d'um dos barrotes que especavam os degraus da tribuna, n'um grupo animado, com copos de champagne na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo do braço enrolada a bandeira vermelha de Starter, e o commissario imberbe, com o chapéo branco cada vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho já molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford, rompeu
para elle, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu vozeirão:
- Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da península, e rapaz cá dos nossos!... Hip hip, hurrah!
Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do starter. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas - em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas.
- Muito gosto em conhecer...
- Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou o commissario. Cá a rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto cá é a confraria, e todo o resto é chinfrinada!
E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia mais sangue á face:
- Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da patria! a melhor mão de redea...
Hip, hip, hurrah...
- Hip, hip, hip... Hurrah!
E foi ainda a voz do starter que deu o hurrah mais vibrante e mais enthusiasta.
Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gritando já de fóra, com o olho acceso:
- Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar no liquido! E você, oh lá de baixo, o patrão, sô Manuel, mande vir esse gelo... Está a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, vá você, rebente! Irra!
No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradição de jantarem juntos, sempre que se encontravam.
- Olá! o general por aqui! exclamou Craft.
Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentão, entalado n'uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braço.
Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford...
- E que me diz você a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se para Carlos.
Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o Jockey-Club rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d'um divertimento que não estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não, então historias!... Em Inglaterra e em França, sim! Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... Então já viam!
E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do apuramento das raças, e da remonta, - o outro ergueu os hombros, com indignação:
- Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura a raça para a remonta da cavallaria?... Ora vá lá montar o exercito com cavallos de corridas!... Em serviço o que se quer não é o cavallo que corra mais, é o cavallo que aguente mais... O resto é uma historia...
Cavallos de corridas são phenomenos! São como o boi com duas cabeças... Então historias!... Em França até lhe dão Champagne, homem!... Então veja lá!...
E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d'um trago, esvasiou o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em conhecer o sr. Clifford, rodou sobre
os tacões, sahiu, bufando, entalando mais debaixo do braço o chicote - que tremia na ponta como avido de vergastar alguem.
Craft sorria, batia no hombro de Clifford.
- Veja você! cá nós, velhos portuguezes, não gostamos de novidades, e de sports...
Somos pelo toiro...
- Com razão, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho. Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha...
De repente, fóra, houve um reboliço, e vozes sobresaltadas gritando ordem! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para dentro do buffete, enfiada. Um policia passou, correndo.
Era uma desordem!
Carlos e os outros, sahindo á pressa, viram ao pé da tribuna real um magote de homens