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- Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.

- Sim, pujante, disse o conde.

Mas elle agora não fallava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem d'estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu esprit...

- Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da snr.ª

D. Maria da Cunha... V. exc.ª não se lembra, snr. D. Maria? Esta minha desgraçada memoria! Ó Thereza, lembras-te d'aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um paradoxo muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois não te lembras, Thereza?

A condessa não se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo anciosamente, com a mão na testa, as suas recordações, - a senhora d'escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d'uma cozinheira preta que tivera uma tia d'ella, a tia Villar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joanna, que estava em casa havia quinze annos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos.

Em seis mezes já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma immoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:

- Ó baroneza, ainda tens a Vicenta?

- Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A snr.ª D. Vicenta, se faz favor.

A outra contemplou-a um instante, com inveja d'aquella felicidade.

- E é a Vicenta que te penteia?

Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra.

Agora andava com a mania de aprender francez. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer j'aime, tu aimes...

- E a senhora baroneza, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessarios.

Está claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!

- Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me lembro!

Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!

- Esta minha desgraçada memoria!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante, philosophica até!

E, por se fallar de cães, a baroneza lembrou-se do Tommy, o galgo da condessa; perguntou por Tommy. Já o não via ha que tempos, esse bravo Tommy! A condessa nem queria que se fallasse no Tommy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandára-o para o Instituto, lá morrera.

- Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos.

- Deliciosa.

E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao snr.

Sousa Netto, que, a proposito de cães, lhe estava fallando da Sociedade protectora dos animaes. O snr. Sousa Netto approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle, não seria mesmo de mais que o governo lhe désse um subsidio.

- Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, á imitação do que se faz lá fóra, como a Sociedade de Geographia e outras, a Protectora dos animaes parece-me decerto uma das mais uteis.

Voltou-se para o lado, para o Ega:

- V. exc.ª pertence?

- Á Sociedade protectora dos animaes?... Não senhor, pertenço a outra, á de Geographia. Sou dos protegidos.

A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sério: pertencia á Sociedade de Geographia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilisadora, detestava aquellas irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem: - e de repente a frialdade que até ahi os conservára ao lado um do outro reservados, n'uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor d'esse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella tinha uma côrzinha no rosto. O seu pé, sem ella saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez; - e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensão amavel:

- Que tolice foi essa da brazileira?... Quem lhe disse isso?

Ella confessou-lhe logo que fôra o Damaso... O Damaso viera contar-lhe o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, á mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe claramente entrevêr uma liaison.

Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade...

- É perfeitamente verdade que eu vou a casa d'essa senhora, que nem brazileira é, que é tão portugueza como eu; mas é porque ella tem a governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa. Foi até o Damaso, elle proprio, que lá me levou como medico!

No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dôce allivio que se fazia no seu coração.

- Mas o Datoaso disse-me que era tão linda!...

Sim, era muito linda. E então? Um medico, por fidelidade ás suas affeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antes de penetrar na casa d'uma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!

- Mas que está ella cá a fazer?...

- Está á espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem ahi... É uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei d'elles. As minhas visitas são de medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...

A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello olhar com que elle lh'as murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos n'uma reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr n'um abraço - se alli lh'o podesse dar.

A senhora d'escarlate, no emtanto, recomeçara a fallar da Russia. O que a assustava é que o paiz era tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dynamite, e uma constituição fraca devia soffrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d'um filho d'elles, filho unico, despachado segundo secretario para a legação de S. Petersburgo.

- O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. É

um horror d'estupidez... Nem francez sabe! De resto não é peor que os outros... Que a quantidade de mônos, de semsaborões e de tolos que nos representam lá fóra até faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um paiz desgraçado.

- Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto é um paiz cursi.

Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calára-se, já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda ácerca da Russia, acabava de contar uma historia ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido...

- Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, já de pé.

Os homens, sós, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café. Então o snr.

Sousa Netto, com a sua chavena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...

- Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.ª... Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. Começava eu então a minha carreira publica... E o avô de v. exc.ª, bom?

- Muito agradecido a v. exc.ª

Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.ª era... Emfim, era o que se chama «um elegante». Tive tambem o prazer de conhecer a mãi de v. exc.ª...

E de repente calou-se, embaraçado, levando a chavena aos labios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secretária da legação da Russia, com quem elle encontrára n'essa manhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o conde, que a admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a instrucção. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser estupida... O conde affirmou logo com exuberancia que não gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na bibliotheca...

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