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- Que doida que eu sou... Vamos vêr Charlie.

O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ahi, n'uma caminha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho cahido para o lado,

os seus lindos caracoes loiros espalhados no travesseiro como uma aureola d'anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escosseza, que trouxera uma luz de sobre a commoda, disse, sorrindo tranquillamente:

- O menino n'estes ultimos dias tem andado muitissimo bem...

Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus labios insaciaveis. Elle colheu um rapido beijo.

E, ao passar na antecamara, onde Sousa Netto e o conde continuavam enfronhados n'uma conversa grave, ella disse ao marido:

- O pequeno está a dormir... O snr. Carlos da Maia achou-o bem.

O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E durante um momento a condessa ficou alli conversando, de pé, a deixar-se serenar, pouco a pouco, n'aquella penumbra favoravel, antes de affrontar a luz forte da sala. Depois, por se fallar em hygiene, convidou o snr. Sousa Netto para uma partida de bilhar; mas o snr. Netto, desde Coimbra, desde a Universidade, não pegára n'um taco. E ia-se chamar o Ega quando appareceu Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d'elle entrou o conde de Steinbroken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama tocou fados.

Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no pateo, acabando de abotoar o paletot, Carlos pôde emfim soltar a pergunta que lhe faiscára nos labios toda a noite:

- Ó Ega, quem é aquelle homem, aquelle Sousa Netto, que quiz saber se em Inglaterra havia tambem litteratura?

Ega olhou-o com espanto:

- Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste immediatamente quem n'este paiz é capaz de fazer essa pergunta?

- Não sei... Ha tanta gente capaz...

E o Ega radiante:

- Official superior d'uma grande repartição do Estado!

- De qual?

- Ora de qual! De qual ha de ser?... Da Instrucção publica!

Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se demorára de mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos interminaveis, fez voar o coupé até á rua de S.

Francisco, olhando a cada momento o relogio, n'um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido por aquelle lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com effeito á porta d'ella estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo comsigo mesmo, tão fraco, tão passivo, que assim se deixára retomar por aquelles braços exigentes, cada vez mais pesados, e já incapazes de o commover...

- A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que voltara da terra havia tres dias, e ainda não cessára de lhe sorrir.

Sentada no sofá, de chapéo, tirando as uvas, ella acolheu-o com uma dôce côr no rosto, e uma carinhosa reprehensão:

- Estive á espera mais de meia hora antes de sahir... É uma ingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!

- Porquê? Está peor, miss Sarah?

Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agora já não eram as visitas de medico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe faltado.

Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto da mesa um livro novo d'estampas; e a ternura, a gratidão infinita do seu coração, que não ousava mostrar á mãe, pôl-a toda na longa caricia em que envolveu a filha.

- São historias que a mamã agora comprou, dizia Rosa, séria e presa ao seu livro. Hei de t'as contar depois... São historias de bichos.

Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapéo.

- Quer tomar uma chavena de chá comnosco, snr. Carlos da Maia? Eu vinha morrendo por uma chavena de chá... Que lindo dia, não é verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o chapéo...

Carlos, só com Rosa, sentou-se junto d'ella, desviando-a do livro, tomando-lhe ambas as mãos.

- Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mamã não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!

Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãosinhas de Rosa.

- E então que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois d'um leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.

- Andei a correr, havia uns patinhos novos...

- Bonitos?...

A pequena encolheu os hombros:

- Chinfrinzitos.

Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?

Rosa sorriu. Fôra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma gaja... O Domingos tinha muita graça.

Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão bonitos vestidos, não devia dizer aquellas palavras... Assim fallava a gente rôta.

- O Domingos não anda rôto, disse Rosa muito séria.

E subitamente, com outra idéa, bateu as palmas, pulou-lhe entre os joelhos, radiante:

- E trouxe-me uns grillos da Praça! O Domingos trouxe-me uns grillos... Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grillos! Parece incrivel, hein? Eu nunca vi ninguem mais medrosa...

Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:

- É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!

Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e, ouvindo assim fallar de mimo, quiz saber quem é que ella estragava com mimo... Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essa manhã fôra castigada!

Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos:

- Sabes como a mamã a castiga? exclamava ella, puxando a manga de Carlos. Sabes?...

Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglez: Bad dog! dreadful dog!

Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o dedinho erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginando com effeito que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sofá. E foi necessario que Rosa a tranquillisasse, de joelhos sobre a pelle de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que ella nem era mau cão, nem feio cão; fôra só para contar como fazia a mamã...

- Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sêde, disse então Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o chá.

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