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dono da casa estava prompto a alugar, já, n'uma semana... E assim se achava ella de repente com uma vivenda pittoresca, mobilada n'um bello estylo, deliciosamente saudavel...

Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada.

- Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa...

- Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente, ha quasi tudo! É tal qual como n'um conto de fadas... As luzes estão accêsas, as jarras estão cheias de flôres... É só tomar uma carruagem e chegar.

- Sómente, é necessario saber o que esse paraíso me vae custar...

Carlos fez-se vermelho. Não previra que se fallasse em dinheiro - e que ella quereria decerto pagar a casa que habitasse... Então preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um anno, andava desejando desfazer-se das suas collecções, e alugar a quinta: o avô e elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e das faienças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder offerecer, por alguns mezes de verão, uma residencia graciosa, e tão confortavel...

- Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de silencio...

Miss Sarah está á tua espera.

Depois, olhando para Carlos, muito séria:

- De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o campo, não tinha feito essa despeza...

- Tinha feito a mesma despeza... Tinha tambem alugado a casa por seis mezes ou por um anno... Onde possuia eu agora de repente um sitio para metter as coisas do Craft? O que não fazia talvez era comprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobilias dos quartos dos criados, etc...

E acrescentou, rindo:

- Ora se me quizer indemnisar d'isso podemos debater esse negocio...

Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente.

- Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber d'aqui a dias que me vou installar n'essa casa... E devem comprehender que a comprou para que eu lá me installasse...

Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d'elle. E isto inquietou-o - o vêl-a assim retrahir-se áquella absoluta communhão d'interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coração.

- Não approva então o que fiz? Seja franca...

- Decerto... Como não hei de eu approvar tudo quanto faz, tudo quanto vem de si?

Mas...

Elle acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triumphar:

- Não ha mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quizer, metteremos n'isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possivel que a nossa affeição se passasse fóra do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas não pode ser!... Alguem tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha sempre alguem que adivinha d'onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisiveis.

Nós não somos deuses, felizmente...

Ella sorriu.

- Quantas palavras para converter uma convertida!

E tudo ficou harmonisado n'um grande beijo.

Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecções do Craft. «É um valor, disse elle ao Villaça, e acabamos d'encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»

Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em «desvario», despeitado por essa transacção secreta para que não fôra consultado. O que o irritava sobretudo era vêr, n'esta acquisição inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo segredo que presentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidencia!... Desde a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cella, fôra elle o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não tinha uma aventura banal d'hotel, de que não mandasse ao Ega «um relatorio». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentára, frouxamente, guardar um mysterio delicado, já o conhecia todo, já lêra as cartas da Gouvarinho, já passára pela casa da titi...

Mas do outro segredo não sabia nada - e considerava-se ultrajado. Via rodas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flôres; via-o chegar de lá, como elle dizia,

«besuntado d'extasi»; via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao

mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E não sabia nada.

Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a fallar de planos de verão, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o dôce socego da casa, a clara vista do Tejo... Aquillo realmente fôra obter por uma mão cheia de libras um pedaço do paraiso...

Era á noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeara com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente, farto d'aquelles louvores eternos a casinhola do Craft.

- Essa concepção do paraiso, exclamou elle, parece-me d'um estofador da rua Augusta!

Como natureza, couves gallegas; como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já por tres barrelas... Um quarto de dormir lugubre como uma capella de santuario... Um salão confuso como o armazem d'um cara-de-pau, e onde não é possivel conversar... A não ser o armario hollandez, e um ou outro prato, tudo aquillo é um lixo archeologico... Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!

Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como reflectindo:

- Com effeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquillo mais habitavel.

Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.

- Habitavel? Vaes ter hospedes?

- Vou alugar.

- Vaes alugar! A quem?

E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:

- Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel d'um predio é sempre um d'esses delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar nem a aza da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!

Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega - e quasi sentia um remorso d'aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contára ao Ega; e essas confidencias constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé...

Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de fallar d'ella ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coração. Além d'isso, Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes lh'o dissesse elle, fraternalmente.

Mas hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente o Ega tomára o seu castiçal, e começava a: accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.

- Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ahi, disse Carlos.

E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, á entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.

Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Suppuzera um romancesinho, d'esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos fallava d'aquelle grande amor, elle sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se d'ahi por diante, e para sempre, o seu

irreparavel destino. Imaginára uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente á disposição das coisas: e sahia-lhe uma creatura cheia de caracter, cheia de paixão, capaz de sacrificios, capaz de heroismos. Como sempre, diante d'estas coisas patheticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chôcha:

- Então estás decidido a safar-te com ella?

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