O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que começa a engordar, veio apertar a mão a Carlos e a Craft. E mal elles lhe fallaram dos seus cavallos (Rabbino, o favorito, e o outro potro) encolheu os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica. Então, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas elle, realmente, não podia apresentar um cavallo decente, com as suas côres, senão d'ahi a quatro annos. De resto não apurava cavallos para aquella melancolia de Belem, não imaginassem os amigos que elle era tão patriota: o seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo...
- Emfim, vamos a vêr... Dê você cá lume. Isto está um horror. E depois, que diabo, para corridas é necessario cocottes e Champagne. Com esta gente seria, e agua fresca, não vae!
N'esse momento um dos commissarios das corridas, um rapagão sem barba, vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapéo branco deitado para a nuca, veio arrebatar o Darque, «que era muito preciso, lá na pesagem, para uma duvidasinha.»
- Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros resignadamente.
De vez em quando vem um d'estes senhores do Jockey-Club, e folheia-me... Veja você, Maia, em que estado eu fico depois das corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me de novo...
E lá foi, rindo da sua pilheria - empurrado para diante pelo commissario, que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava catita.
- Vamos nós vêr as mulheres, disse Carlos.
Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no rebordo, n'uma fila muda, olhando vagamente, como d'uma janella em dia de procissão, estavam ali todas as senhoras que vêem no high-life dos jornaes, as dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e além um d'esses grandes chapéos emplumados á Gainsborough, que então se começavam a usar, carregava d'uma sombra maior o tom trigueiro d'uma carinha miuda. E na luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta, as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com um baço de pó de arroz.
Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d'Alvim, nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos.
Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras, de côres claras, interessando-se pelas corridas, uma de programma na mão, a outra de pé e de binoculo estudando a pista. Ao lado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. N'uma bancada isolada, em silencio, Villaça com duas damas de preto.
A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava tambem aquella que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.
- É um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo um dito do Ega.
Carlos, no entanto, fôra fallar á sua velha amiga D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque,
com o seu sorriso de bôa mamã. Era a unica senhora que ousara descer do retiro ajanellado da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ella disse, não aturara a séca de estar lá em cima perfilada, á espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus cabellos já grisalhos, só ella parecia divertir-se alli, muito á vontade, com os pés pousados na travessa d'uma cadeira, o binoculo no regaço, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes por meninos... Tinha comsigo uma parenta que apresentou a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria bonita se não fossem as olheiras negras, cavadas até ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé d'ella, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...
- Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.
- Entramos todos, sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...
N'esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan mollengão de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapéo branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora hespanhola, essa, tomou o oculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descançadamente, poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a musica, dando ás corridas um ar de arraial... Além d'isso, que tolice, o hymno, como n'um dia de parada!
- E este hymno, então, que é medonho, dizia Carlos. A sr.ª D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua theoria dos hymnos?
Maravilhosa!
- Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, já encantada.
- O Ega diz que o hymno é a definição pela musica do caracter d'um povo. Tal é o compasso do hymno nacional, diz elle, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a sr.ª
D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A Marselheza avança com uma espada núa. O God save the queen adianta-se, arrastando um manto real...
- E o hymno da Carta?
- O hymno da Carta ginga, de rabona.
E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente o binoculo no regaço, murmurou:
- Tiene cara de buena persona.
- Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!
No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos Productos. Eram o n.º1 e o n.º 4. D.
Maria Telles quiz-lhe saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programma:
- Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braço. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia...
Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma, e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado n'esse dia, com um lustre d'oleo na grenha, levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente D. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham dançado muita ardente mazurka nos salões de Arroios. Ella tratava-o por tu. Elle dizia sempre boa amiga, e querida Maria.
- Deixa vêr os nomes d'esses cavallos, Alencar... Senta-t'ahi, anda, faze companhia.
Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes dos cavallos eram Jupiter e Escossez...
- Nenhum d'esses nomes me agrada, não aposto. E então que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha...
Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e passando a mão pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de elegancia, um perfume de côrte... Depois, lá em baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia do apuramento das raças cavallares...
- Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d'isso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que o apuramento...
- Sim, com effeito, o apuramento, muito importante... - disse Carlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.
Eram quasi tres horas, e agora, de certo, ella já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não apparecia tambem... Começava a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tédio.
No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos d'ourello, passou pelo braço do irmão, abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas côr de tomate, a estalar dentro d'um vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atraz o barão, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande chapéo de palha.
D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de perú, a voz da baroneza achando que c'était charmant, c'était très beau. O barão, aos pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante d'aquelles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte núa.