escandalo...
- Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Rachel... Depois é que ellas são!
Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:
- É horroroso!
Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a face:
- Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!
- Tira-as...
Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz.
Mas arrancou-as por fim - e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça.
Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. - E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate á Carlos IX
emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho.
Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:
- Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...
O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que nada no mundo ia bem.
Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer d'agua, atroando a calçada.
Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braços d'outros, anciosa, á espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito - todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.
Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se offereciam...
Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão lamacento.
Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.
Ega rompera logo a contar o seu caso - emquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão. Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accomodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.
- Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas tu agora?
- Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que não manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.
- Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.
Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos.
Ali estava, n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua teima - um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não!
Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, á civilisação!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...
- Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um sophá.
Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.
Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril, nem theatral... A questão estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher.
Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés...
- Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: «Guarde-a».
- Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de ter feito isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve portanto um acto de moderação. E tu queres mandal-o desafiar por isso?...
Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n'aquelle simples gibão escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se não tratava d'isso! Não, não se tratava da mulher! A questão era outra...
Carlos então zangou-se.
- Para que diabo te expulsou elle de casa então? Não disparates, homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E é triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se elle não quizer fazer nada, tens de ficar de braços cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te infame...
- Então tenho de engolir a affronta?
Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano - e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de affronta.
Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou um momento a cabeça enterrada nas mãos.
- Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem ter rasão... Eu estou-me a sentir idiota... Então, vamos, que hei de eu fazer?
- Vocês teem a tipoia á espera? perguntou tranquillamente Craft.