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Ah bonjour, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creança estava melhor? l'enfant etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur le docteur Maia.

Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como uma faisca.

A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps azul, e um grande espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficára enrolado um bordado.

- Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com um esforço sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que gente!

- Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos, vendo sobre a meza os numeros do Pays.

- Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas tem pouco fundo.

Melanie voltou pedindo a Monsieur le Docteur para entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalhacahida, de dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos.

Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de sa responsabilité, et que il etait très affligé.

Carlos ficou só, na intimidade d'aquelle gabinete de toilette, que n'essa manhã ainda não fôra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço polido, estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte côr de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e baptistes, d'um brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem.

Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda, e tão leves, que uma aragem as faria voar; e, no chão corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo, e grandes fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda côr de rosa, onde de certo viajara a cadellinha.

Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um sophá onde ficára estendido, com as duas mangas abertas, á maneira de dous braços que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a vira, a primeira vez, apear-se á porta do hotel.

O forro, de setim branco, não tinha o menor acolxoado, tão perfeito devia ser o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sophá, n'essa attitude viva, n'um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fórma d'um corpo amoroso, desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos sentiu bater o coração. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave de caricia...

Então desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do hotel Shneid. Quando se voltou, miss Sarah estava diante d'elle, vestida de preto e muito córada: era uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos só percebeu docteur.

- Yes, I am the doctor, disse elle.

A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão bom, ter emfim com quem se entender!

A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-

a d'uma responsabilidade!...

Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n'um quarto com as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu a fórma d'um grande leito e o brilho de cristaes n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas?

Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem á menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.

Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve a sua admiração.

- Que linda creança!

E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo d'artista, pensando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinação de luz, não egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa: e esta adoravel brancura era ainda realçada por um cabello negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d'um azul profundo e liquido, pareciam n'esse instante maiores, muito serios, e muito abertos para elle.

Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da dôr, perdida n'aquelle vasto leito, e apertando nos braços uma enorme boneca paramentada, de pello riçado, d'olhos tambem azues e arregalados tambem.

Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh'a, - perguntando se a boneca tambem estava doente.

- Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito séria, sem tirar d'elle os seus magnificos olhos. Eu já não tenho...

Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e a sua vontade já de lunchar.

Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava boa. O que a assustara fôra achar-se ali só, sem a mamã, com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma creança ingleza saía com ella para o ar... Mas estas meninas estrangeiras, tão debeis, tão delicadas... E o labiosinbo gordo da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raças inferiores e deterioradas.

- Mas a mamã não é doente?

Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco...

- E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado á cabeceira do leito.

- Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que eu que sou Rosicler.

- Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle nome de livro de cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas.

Então, como colhendo simplesmente informações de medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudança de clima.

Habitavam ordinariamente Paris, não é verdade?

Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verão iam para uma quinta da Touraine, ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até ao começo da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que ella estava com Madame.

Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braços, não cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando, sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da mãe eram negros: os do pae d'azeviche e pequeninos: quem herdara ella aquellas maravilhosas pupillas d'um azul tão rico, liquido e doce.

Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella installação banal d'hotel, certos retoques d'uma elegancia delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lençoes não eram do hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados a duas côres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarçava o medonho reps desbotado.

Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros de encadernações ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular - o Manual de interpretação dos sonhos. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante, uma enorme caixa de pó de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d'um circulo de brilhantes miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal.

Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botão de rosa; elle não ousou beijal-a assim n'aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas na testa.

- Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco.

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