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- E de lá?...

O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá voltavam a Lisboa.

- Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima da meza, traga-me você um calice de cognac, e uma pouca d'agua fresca.

Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não teve animo de voltar ao palacio, nem quis sahir mais d'ali; e arrancando as luvas, passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos n'ella!... Porque, o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente!

Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera perigrinações ridiculas de theatro em theatro: n'uma manhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a vêr.

Agora sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e não a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n'alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao céo, d'ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as estrellas d'acaso! Ellas não são d'uma essencia differente, nem contéem mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Elle não a tornara a vêr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle não a via, e não socegava...

O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez, quasi córando, fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ás sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia só. O sr. Castro Gomes, que dormia n'um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite, ficava uma eternidade á meza, fumando cigarettes e molhando os beiços em copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominó. A senhora

tinha montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar até domingo, mas fôra ella que apressára a partida...

- Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?...

- Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V. ex.ª toma mais cognac?

Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraço. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada, n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraço, vendo tambem cahir a tarde - se ella não estivesse impaciente por tornar a vêr a filha, algum bébésinho loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante deusa era tambem uma boa mamã; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento humano nas suas bellas fórmas de marmore.

Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu peignoir, com o cabello enrolado á pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bébé nos seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe com um riso d'ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu coração fugia para ella... Ah! poder ter o direito de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d'ella; depois, que divina existencia, escondida n'um ninho de flôres e de sol, longe, n'algum canto da Italia...

E, toda a sorte de idéas d'amor, de devoção absoluta, de sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente - emquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d'aquelle bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa côr d'ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra n'uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de repente parado n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...

- Oh Carlos, tu estás ahi?

Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos appareceu á varanda do terraço.

- Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando alegremente o seu panamá. Nós lá estivemos á espera, no covil

real... Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te á cadeia!

E o poeta riu largamente da sua pilheria - emquanto Cruges, ao lado, de mãos atraz das costas, e a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.

- Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sêde.

Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraço - depois de ter gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima meia da fina.

- Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os passos. Então, parece-me que o que nos resta a fazer é jantar, e abalar...

Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d'aquelle vasto casarão historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, «melhores que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.; e trazia de lá uma pouca d'essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.

E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, começava a entristecel-o.

Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas, mandar vir á porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa.

- E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac, enquanto vocês vão ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender la abaixo á cosinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um bacalhau á Alencar, recipe meu... E

vocês verão o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!

Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontrassem mais o Eusebiosinho.

Mas, apenas pozeram os pés nos primeiros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, já todos reconciliados, a Concha contente – e installados aos dois cantos d'uma meza, com cartas. O Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca.

O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára miseravelmente com duas corôas, já luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, até de madrugada.

- Então vv. exas. não se tentam? Isto é para passar o tempo... Em Cintra tudo serve...

Valete! Perdeu você outro mico no rei. Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!

Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado - no momento em que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado, quiz verificar, com as lunetas negras sobre o baralho, se lá estavam todos os reis.

Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo a honra do seu homem: então Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis estavam lá.

Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e recomeçou a baralhar magestosamente.

- Então v. ex.ª não se tenta? repetia elle para o maestro.

Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela meza, com o olho nas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o.

Com a mão nervosa, escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e de porta.

Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.

- Então tu?... exclamou Carlos com severidade.

- Já desço, rosnou o maestro.

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