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Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.

- Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.

Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente...

A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...

- Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; - e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o sr. Conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.

D'ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella, diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no sophá - e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenço de seda da India.

Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhã, na camara, se lembrara d'elle...

- Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.

- O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.

- Fallaste? exclamou ella, voltando-se com um interesse encantador.

É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres Valente (homem de litteratuta, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira defender a gymnastica obrigatoria nos collegios - erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.

- Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba!

O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!...

- Ah, esta piada, sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que v. ex.ª ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um chic!

O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo impregnado de cathecismo», elle lançara-lhe uma palavra cruel.

- Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando o lenço para se assoar outra vez.

- Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este paiz retomará o seu logar á testa da civilisação, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de instrucção, nós outros os legisladores formos, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio...

- Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço.

Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia adoravel.

E o conde, quando elle se despediu, não se contentou com um simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez, movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do sophá - debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.

X

Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada, e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva, - Carlos apeava-se d'um coupé de praça, que viera parar, de vagar, á esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos. Dous sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente d'uma portinha suspeita. E com effeito a velha traquitana de rodas amarellas acabava de ser uma alcova d'amor, perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro d'ella, pela estrada de Queluz, com a sr.ª condessa de Gouvarinho.

A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidão da Patriarchal para se desembaraçar do calhambeque d'assento duro, onde durante a ultima hora suffocára, sem ousar descer as vidraças, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis que ella lhe dava na barba...

Até ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n'uma casa da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fôra para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem de cathechisação á provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas á treva catholica, purificando (como ella dizia) o tremedal papista... Já na escada havia um cheirinho adocicado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar pendia um largo cartão, com um distico em letras de ouro entrelaçadas de lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeçando logo n'um montão de Biblias. O quarto todo era um ninho de Biblias; havia-as ás pilhas por cima dos moveis, transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a

pares de galochas, cahidas para o fundo da bacia d'assento, todas do mesmo formato, entaladas n'uma encadernação negra como n'uma armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em lettras de côr, irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaças insolentes do inferno... E no meio d'esta religiosidade anglicana, á cabeceira d'um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas quasi vasias de cognac e de gin. Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.

Depois a condessa começou a ter medo d'uma visinha, uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma occasião em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas á porta atroaram a casa. A pobre condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo á janella, viu um homem que se affastava, com uma estatueta de gesso na mão, outras dentro d'um cesto.

Mas a condessa jurava que fôra a Borges quem mandára o italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres avisos, tres rebates da Moral... Não quizera voltar mais ao beatifico cuté da titi. E n'essa tarde, como não havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro d'aquella tipoia de praça.

Mas Carlos vinha de lá enervado, amollecido, sentindo já na alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles braços perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoço, - e agora, pelo passeio de S. Pedro d'Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda, elle ía pensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa ía-se tornando absurda com aquella determinação anciosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar n'ella o logar mais largo e mais profundo - como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os labios de ambos um momento, mas os seus destinos tambem e para sempre.

N'essa tarde lá tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu peito, com os olhos affogados n'uma ternura supplicante: Se tu quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sós!... E isto era claro – a condessa concebera a idéa extravagante de fugir com elle, ir viver n'um sonho eterno de amor lyrico, n'algum canto do mundo, o mais longe possivel da rua de S. Marçal! Se tu quizesses! Não, com mil demonios, não queria fugir com a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

E não era só isto - mas ainda exigencias, egoismos, explosões tumultuosas d'um temperamento cioso: já mais de uma vez, n'essas duas curtas semanas, por pieguices, ella despropositára, fallara de morrer, debulhada em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda uma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o inquietava eram certos clarões que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso dos olhos seccos, revelando a paixão que se accendera n'aquelles nervos de mulher de trinta e tres annos, e a queimava até ás profundidades do seu ser... Certamente este amor punha na sua vida um luxo mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha os olhos turvos d'agua, e fallava em morrer, e torcia os braços, e queria fugir com elle - então adeus! Tudo estava estragado; e a sr.ª condessa com a sua verbena, os seus cabellos côr de braza, e o seu pranto, era apenas um trambolho!

O chuveiro parara, um bocado d'azul lavado appareceu entre nuvens. E Carlos descia a rua de S. Roque - quando encontrou o marquez, sahindo d'uma confeitaria, tristonho, com um embrulho na mão, e o pescoço abafado n'um enorme cache-nez de seda branca.

- Que é isso? Constipação? perguntou Carlos.

- Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d'elle com uma lentidão de moribundo. Deitei-me tarde. Cançasso.

Oppressão no peito. Pigarreira. Dôres no lado. Um horror... Levo já aqui rebuçados.

- Não seja piegas, homem! Você o que precisa é roast-beef e uma garrafa de Borgonha... Não é hoje que você janta lá no Ramalhete?... É, até tem lá o Craft e o Damaso... Então descemos por essa rua do Alecrim, que já não chove, depois pelo Aterro fóra, a passo gymnastico, e em chegando lá você está curado.

O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo, uma dôr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, liquidado. O mundo começava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos, uma preoccupação angustiosa da Eternidade.

N'esses dias fechava-se no quarto com o padre capellão - com quem ás vezes, todavia, terminava por jogar as damas.

- Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar pela porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me você ir primeiro ao Gremio... Quero escrever á Manoeleta que não conte comigo esta noite...

Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d'esse devasso do Ega. Esse devasso do Ega lá estava em Celorico, na quinta materna, ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na grande arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia chamar o Lodaçal - escripta para se vingar de Lisboa.

- O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais no cachenez, é se eu estou assim no domingo para as corridas!

- O quê! exclamou Carlos, então as corridas são já no domingo?

O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande sportman de Cordova, que devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford era um gentleman e com os seus cavallos de raça, os seus jockeys inglezes, constituia a unica feição séria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era uma brincadeira de pilecas e d'abas...

- Você não conhece o Clifford?... Bello rapaz! Um pouco poseur, mas oiro de lei.

Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braço a Carlos.

- Veja esse pulso!

- O pulso está excellente... Vá você dar lá esse golpe á Manoela, que eu fico aqui á espera.

No domingo pois, d'ahi a cinco dias, eram as corridas... E ella estaria lá, elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas semanas vira-a duas vezes: uma occasião, estando a conversar com o Taveira á porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de chapeu, calçando uma grande luva preta; d'outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella viera parar á porta do Mourão, ao Chiado, n'um coupé da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava dentro á loja um embrulho que tinha a fórma d'um cofre, apertado com uma fita vermelha.

D'ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n'elle um momento: e parecera a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se, n'uma leve doçura, ao pousar no seu... Era talvez uma illusão; mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a realisar a antiga idéa (ainda que desagradavel) de ser apresentado pelo Damaso ao Castro Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d'esta exigencia, ficou perturbado; e com um ar de cão que defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel comportamento do Castro Gomes, que não viera como lh'o annunciara, havia tres semanas, deixar o seu cartão

ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de sport; nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse dar com correcção o nó da gravata; e seria agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos de vez em quando, com o Craft, com o marquez, a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso, que terminou por propôr a Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porém não queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu na mão, atraz do Damaso. Resolveram então esperar pelas corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. «Ahi, no recinto da pesagem, disse o Damaso, a apresentação é mais chic... É mesmo pôdre de chic.»

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