"Unleash your creativity and unlock your potential with MsgBrains.Com - the innovative platform for nurturing your intellect." » » 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Add to favorite 🌘 🌘 ,,Os Maias'' - de Eça de Queirós🌘 🌘

Select the language in which you want the text you are reading to be translated, then select the words you don't know with the cursor to get the translation above the selected word!




Go to page:
Text Size:

Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão, onde esperava o coupé de Carlos.

Na alameda de acacias, tão tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam agora os passaros.

A quinta, fresca e lavada, verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d'elles.

- Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.

- Não, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem não estava bebado... O que estava era fraco.

Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e philosophico, esta reflexão:

- O que é a gente beber bons vinhos... Estou como se não fosse nada!

Craft recommendou que, se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o coupé partiu.

Durante a manhã não veiu telegramma á quinta; e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava á porta, já escurecera, duas vélas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago: e Ega passeiava d'um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella sécca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.

- Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.

Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia que elle tivesse assassinado a mulher! O

sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem

conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por capricho de

derramar sangue...

- Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou elle aterrado.

E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que, áquella hora, não podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria estar só na sala: e lá ficou, mais pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.

- Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridão do quarto.

Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n'um desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabão; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo.

Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava o toucador, onde havia um maço de ganchos de cabello, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.

Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi á cozinha. A criada estava sentada á meza, com a mão mettida pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n'uma cadeira, chupava o seu cigarro.

- Quem foi que entrou? perguntou Carlos.

- Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das costas.

Carlos voltou ao quarto, annunciando:

- É a confidente. As cousas terminam amavelmente.

- E como queria você que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que não convém um escandalo... É isto que calma os maridos. Além d'isso, já se satisfez, já lhe offereceu pontapes...

N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.

- Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça, e vão ámanhã para Inglaterra!

Carlos olhou para o Craft - que movia a cabeça, como vendo todas as suas previsões realisadas, e approvando plenamente.

- Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n'uma voz que sibillava. E

depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um menage modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha!

Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel - não perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer á paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeça de galgo por castão. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixão! Aquillo pozera vergões roxos onde os seus labios tinham avivado signaes côr de rosa! E tinham feito as pazes. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas não! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as applicações de arnica! Aquillo acabava em arnica!

- Entre vocemecê para aqui, sr.ª Adelia, gritou elle para a sala, entre para aqui! Aqui só ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto são amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.ª

Adelia, sente-se... Não faça ceremonia... E póde contar.... Aqui a sr.ª Adelia, meninos, viu tudo, viu a coça!

A sr.ª Adelia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um chapéo de flôres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. Não, ella não vira... Então o sr. Ega não tinha percebido bem... Ella só ouvira.

- Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas

pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o

Domingos á espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei até que eram ladrões.

Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, lá para o fundo da alcova. Eu ainda

puz o olho á fechadura, mas não pude vêr nada... Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões, e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se

perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo ao Domingos «ai que é uma questão, ai que lá se foi tudo.» Mas de repente, silencio geral! Nós voltámos para a cozinba; d'ahi a pouco o sr.

Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podiamos deitar, que elles não precisavam nada, e que ámanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado, até me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.

A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coça!...

Se um covarde d'aquelles não merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!... Tudo uma corja!

- E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como elle descobriu?...

- Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos na cabeça.

Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!

- Estranho, estranho! murmurava Craft.

Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.

- Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr.

Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha alto.

Are sens