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– O que é que você come?

– Cachorro-quente.

– Só?

– Às vezes como sanduíche de mortadela.

– Que é que você bebe? Leite?

– Só café e refrigerante.

– Que refrigerante? — perguntou ele sem saber o que falar. A toa indagou:

– Você às vezes tem crise de vômito?

– Ah, nunca!, exclamou muito espantada, pois não era doída de desperdiçar comida, como eu disse.

O médico olhou-a e bem sabia que ela não fazia regime para emagrecer. Mas era-lhe mais cômodo insistir em dizer que não fizesse dieta de emagrecimento. Sabia que era assim mesmo e que era médico de pobres. Foi o que disse enquanto lhe receitava um tônico que ela depois nem comprou, achava que ir ao médico por si só já curava. Ele acrescentou irritado sem atinar com o porquê de sua súbita irritação e revolta:

– Essa história de regime de cachorro-quente é pura neurose e

o que está precisando é procurar um psicanalista!

Ela nada entendeu mas pensou que o médico esperava que ela sorrisse. Então sorriu.

O médico muito gordo e suado tinha tique nervoso que o fazia de quando em quando ritmadamente repuxar os lábios. O resultado era parecer que estava fazendo beicinho de bebê quando está prestes a chorar.

Esse médico não tinha objetivo nenhum. A medida era apenas para ganhar dinheiro e nunca por amor á profissão nem a doentes.

Era desatento e achava a pobreza uma coisa feia. Trabalhava para os pobres detestando lidar com eles. Eles eram para ele o rebotalho de uma sociedade muito alta á qual também ele não pertencia. Sabia que estava desatualizado na medicina e nas novidades clínicas mas para pobre servia. O seu sonho era ter dinheiro para fazer exatamente o que queria: nada.

Quando ele avisara que ia examiná-la ela disse:

– Ouvi dizer que no médico se tira a roupa mas eu não tiro coisa nenhuma.

Passara-a pelo raio X e dissera:

– Você está com começo de tuberculose pulmonar.

Ela não sabia se isso era coisa boa ou coisa ruim. Bem, como era uma pessoa muito educada, disse:

– Muito obrigada, sim?

O médico simplesmente se negou a ter piedade. E acrescentou: quando você não souber o que comer faça um espaguete bem italiano.

E acrescentou com um mínimo de bondade a que ele se permitia já que se considerava também injustiçado pela sorte:

– Não é tão caro assim ...

– Esse nome de comida que o senhor falou eu nunca comi na vida. É bom?

– Claro que é! Olhe só a minha barriga! Isso é resultado de

boas macarronadas e muita cerveja. Dispense a cerveja, é melhor não beber álcool. Ela repetiu cansada:

– Álcool?

– Sabe de uma coisa? Vá para os raios que te partam!

Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiúra e anonimato total pois ela não é para ninguém. Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela. Quisera eu tanto que ela abrisse a boca e dissesse:

– Eu sou sozinha no mundo e não acredito em ninguém; todos mentem, às vezes até na hora do amor, eu não acho que um ser fale com o outro, a verdade só me vem quando estou sozinha.

Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia. (Vejo que tentei dar a Maca uma situação minha: eu preciso de algumas horas de solidão por dia senão “me muero”.)

Quanto a mim, só sou verdadeiro quando estou sozinho.

Quando eu era pequeno pensava que de um momento para outro eu cairia para fora do mundo. Por que as nuvens não caem, já que tudo cai? É que a gravidade é menor que a força do ar que as levanta.

Inteligente, não é? Sim, mas caem um dia em chuva. É a minha vingança.

Nada contou a Glória porque de um modo geral mentia: tinha vergonha da verdade. A mentira era tão mais decente. Achava que boa educação é saber mentir. Mentia também para si mesma em devaneio volátil na sua inveja da colega. Glória, por exemplo, era inventiva: Macabéa viu-a se despedir de Olímpico beijando a ponta dos próprios dedos e jogando o beijo no ar como se solta passarinho,

o que Macabéa nunca pensaria em fazer.

(Esta história são apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem direto antes de eu pensar. Sei muita coisa que não posso dizer. Aliás pensar o quê?) Glória, talvez por remorso, disse-lhe:

– Olímpico é meu mas na certa você arranja outro namorado: Eu digo que ele é meu porque foi o que a minha cartomante me disse e eu não quero desobedecer porque ela é médium e nunca erra. Por que você não paga uma consulta e pede pra ela te pôr as cartas?

– É muito caro?

Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro. O

pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua. Eu queria chafurdar no lodo, minha necessidade de baixeza eu mal controlo, a necessidade da orgia e do pior gozo absoluto. O pecado me atrai, o que é proibido me fascina. Quero ser porco e galinha e depois matá-los e beber-lhes o sangue. Penso no sexo de Macabéa, miúdo mas inesperadamente coberto de grossos e abundantes pêlos negros —

seu sexo era a única marca veemente de sua existência.

Ela nada pedia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo. Quanto a mim, estou cansado.Talvez da companhia de Macabéa, Glória, Olímpico. O médico me enjoou com sua cerveja.

Tenho que interromper esta história por uns três dias.

Nestes

últimos

três

dias,

Are sens