– Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida.
Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da música era a sua única vibração.
E o namoro continuava ralo. Ele:
– Depois que minha santa mãe morreu, nada mais me prendia na Paraíba.
– De que é que ela morreu?
– De nada. Acabou-se a saúde dela.
Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria. Assim registrou um portão enferrujado, retorcido, rangente e descascado que abria o caminho para uma série de casinhas iguais de vila. Vira isso do ônibus. A vila além do número 106 tinha uma plaqueta onde estava escrito o nome das casas. Chamava-se “Nascer do Sol”. Bonito o nome que também augurava coisas boas.
Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas. Ele dizia o que ela nunca tinha ouvido. Uma vez ele falou assim:
– A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se muda – e disse uma palavra difícil – vê se muda de
“expressão”.
Ela disse consternada:
– Não sei como se faz outra cara. Mas é só na cara que sou triste porque por dentro eu só até alegre. É tão bom viver, não é?
– Claro! Mas viver bem é coisa de privilegiado. Eu sou um e você me vê magro e pequeno mas sou forte, eu com um braço posso levantar você do chão. Quer ver?
– Não, não, os outros olham e vão maldar!
– Magricela esquisita ninguém olha.
E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz.
Realmente ele a levantou para o ar, acima da própria cabeça. Ela disse eufórica:
– Deve ser assim viajar de avião.
É. Mas de repente ele não agüentou o peso num só braço e ela
caiu de cara na lama, o nariz sangrando. Mas era delicada e foi logo dizendo:
– Não se incomode, foi uma queda pequena.
Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue, enxugou o rosto com a saia, dizendo:
– Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia.
Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra.
Passou vários dias sem procurá-la: seu brio fora atingido.
Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos diferentes entraram num açougue. Para ela o cheiro da carne crua era um perfume que a levitava toda como ,se tivesse comido. Quanto a ele, o que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do açougueiro e também queria ser. Meter a faca na carne o excitava.
Ambos saíram do açougue satisfeitos. Embora ela se perguntasse: que gosto terá esta carne? E ele se perguntava: como é que uma pessoa consegue ser açougueiro? Qual era o segredo? (O pai de Glória trabalhava num açougue belíssimo.) Ela disse:
– Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer.
– Besteira, morre-se e morre-se de uma vez.
– Não foi o que minha tia me ensinou.
– Que tua tia se dane.
– Sabe o que eu mais queria na vida? Pois era ser artista de cinema. Só vou ao cinema no dia em que o chefe me paga. Eu escolho cinema poeira, sai mais barato. Adoro as artistas. Sabe que Marylin era toda cor-de-rosa?
– E você tem cor de suja. Nem tem rosto nem corpo para ser artista de cinema.
– Você acha mesmo?
– Tá na cara.
– Não gosto de ver sangue no cinema. Olhe, sangue eu não posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar.
– Vomitar ou chorar?
– Até hoje com a graça de Deus nunca vomitei.
– É, dessa vaca não sai leite.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava.