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Ele: – Olhe, até estou suspirando de agonia. Vamos não falar em nada, está bem?

Ela: – Sim, está bem, como você quiser.

Ele: – É, você não tem solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu virei eu. No sertão da Paraíba não há quem não saiba quem é Olímpico. E um dia o mundo todo vai saber de mim.

– É?

– Pois se eu estou dizendo! Você não acredita?

– Acredito sim, acredito, acredito, não quero lhe ofender.

Em pequena ela vira uma casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela. Mas não sabia como fazer e então perguntou a Olímpico:

– Você sabe se a gente pode comprar um buraco?

– Olhe, você não reparou até agora, não desconfiou que tudo que você pergunta não tem resposta?

Ela ficou de cabeça inclinada para o ombro assim como uma pomba fica triste.

Quando ele falava em ficar rico, uma vez ela lhe disse:

– Não será somente visão?

– Vá para o inferno, você só sabe desconfiar. Eu só não digo palavrões grossos porque você é moça-donzela.

– Cuidado com suas preocupações, dizem que dá ferida no estômago.

– Preocupações coisa nenhuma, pois eu sei no certo que vou vencer. Bem, e você tem preocupações?

– Não, não tenho nenhuma. Acho que não preciso vencer na vida.

Foi a única vez em que falou de si própria para Olímpico de Jesus. Estava habituada a se esquecer de si mesma. Nunca quebrava seus hábitos, tinha medo de inventar.

– Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado “Alice no País das Maravilhas” e que era também um matemático? Falaram também em “élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?

– Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher.

Desculpe a palavra de eu ter dito fresco porque isso é palavrão para moça direita.

– Nessa rádio eles dizem essa coisa de “cultura” e palavras difíceis, por exemplo: o que quer dizer “eletrônico”?

Silêncio.

– Eu sei mas não quero dizer.

– Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic. A rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?

– Cultura é cultura — continuou ele emburrado. Você também vive me encostando na parede.

– É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer

“renda per capita”?

– Ora, é fácil, é coisa de médico.

– O que dizer rua Conde de Bonfim? O que é que conde? É

príncipe?

Não contou que o roubara no mictório da fábrica: o colega o tinha deixado na pia quando lavara as mãos. Ninguém soube, ele era um verdadeiro técnico em roubar: não usava o relógio de pulso no trabalho.

– Sabe o que mais eu aprendi? Eles disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho. Eu também ouvi uma música linda, eu até chorei.

– Era samba?

– Acho que era. E cantada por um homem chamado Caruso que se diz que já morreu. A voz era tão macia que até doía ouvir. A música chamava-se “Una Furtiva Lacrima”. Não sei por que eles não disseram lágrima.

“Una Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida.

Enxugando as próprias lágrimas tentou cantar o que ouvira. Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesma era. Quando ouviu começara chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma.

Muitas coisas sabia que não sabia entender. “Aristocracia”

significaria por acaso uma graça concedida? Provavelmente. Se é assim, que assim seja. O mergulho na vastidão do mundo musical que não carecia de se entender. Seu coração disparara. E junto de Olímpico ficou de repente corajosa e arrojando-se no desconhecido de si mesma disse:

– Eu acho que até sei cantar essa música. Lá-lá-lá-lá-lá.

– Você até parece uma muda cantando. Voz de cana rachada.

– Deve ser porque é a primeira vez que canto na vida.

Ela achava que “lacrima” em vez de lágrima era erro do homem da rádio. Nunca lhe ocorrera a existência de outra língua e pensava que no Brasil se falava brasileiro. Além dos cargueiros do mar nos domingos, só tinha essa música. O substrato último da música era a sua única vibração.

E o namoro continuava ralo. Ele:

– Depois que minha santa mãe morreu, nada mais me prendia na Paraíba.

– De que é que ela morreu?

– De nada. Acabou-se a saúde dela.

Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas insignificantes como ela própria. Assim registrou um portão enferrujado, retorcido, rangente e descascado que abria o caminho para uma série de casinhas iguais de vila. Vira isso do ônibus. A vila além do número 106 tinha uma plaqueta onde estava escrito o nome das casas. Chamava-se “Nascer do Sol”. Bonito o nome que também augurava coisas boas.

Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas. Ele dizia o que ela nunca tinha ouvido. Uma vez ele falou assim:

– A cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo. Você tem cara de quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se muda – e disse uma palavra difícil – vê se muda de

“expressão”.

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