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Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela só sentia o suor, um suor que cheirava mal. Esse suor me parece de má origem.

Não sei se estava tuberculosa, acho que não. No escuro da noite um homem assobiando e passos pesados, o uivo do vira-lata abandonado. Enquanto isso – as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que nada tem a ver com ela e conosco. Pois assim se passavam os dias. O cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida murcha. Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do Acre: é que a vida brotava no chão, alegre por entre pedras.

Rua do Acre para morar, rua do Lavradio para trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo. Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe gratidão. Sono superficial porque estava há quase um ano resfriada.

Tinha acesso de tosse seca de madrugada: abafava-a com o

travesseiro ralo. Mas as companheiras do quarto – Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas – não se incomodavam.

Estavam cansadas demais pelo trabalho que nem por ser anônimo era menos árduo. Uma vendia pó-de-arroz Coty, mas que idéia. Elas viravam para o outro lado e readormeciam. A tosse da outra até que as embalava em sono mais profundo. O céu é para baixo ou para cima? Pensava a nordestina. Deitada, não sabia. Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.

É. Eu me acostumo mas não amanso. Por Deus! Eu me dou melhor com os bichos do que com gente. Quando vejo o meu cavalo livre e solto no prado – tenho vontade de encostar meu rosto no seu vigoroso e aveludado pescoço e contar-lhe a minha vida. E quando acaricio a cabeça de meu cão – sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.

Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que a vida incomoda bastante, alma que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a sua. Imaginavazinha, toda supersticiosa, que se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver – se desencantaria de súbito de princesa que era e se transformaria em bicho rasteiro. Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois, quem cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: Quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e telefone.

Quanto à ela, até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava uma rosa.

Tudo isso acontece no ano este que passa e só acabarei esta história difícil quando eu ficar exausto da luta, não sou um desertor.

Às vezes lembrava-se de uma assustadora canção desafinada de meninas brincando de roda de mãos dadas – ela só ouvia sem participar porque a tia a queria para varrer o chão. As meninas de cabelos ondulados com laços de fita cor-de-rosa. “Quero uma de vossas filhas de marré-marré-deci”. “Escolhei a qual quiser marré”. A música era um fantasma pálido como uma rosa que é louca de beleza mas mortal: pálida e mortal a moça era hoje o fantasma suave e terrificante de uma infância sem bola nem boneca. Então costumava fingir que corria pelos corredores de boneca na mão atrás de uma bola e rindo muito a gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi. (Eu bem avisei que era literatura de cordel, embora eu me recuse a ter qualquer piedade).

Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.

Volto à moça: o luxo que se dava era tomar um gole de café frio antes de dormir. Pagava o luxo tendo azia ao acordar.

Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos.

Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro, quanto mais buzinassem, melhor para ela. Além desses medos, como se não bastassem, tinha medo grande de pegar doença ruim lá embaixo dela – isso, a tia lhe ensinara.

Embora os seus pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão. Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manha. Vagamente pensava de muito longe e sem palavras o

seguinte: já que sou, o jeito é ser. Os galos de que falai avisavam mais um repetido dia de cansaço. Cantavam o cansaço. E as galinhas, que faziam elas? Indagava-se a moça. Os galos pelo menos cantavam. Por falar em galinha, a moça às vezes comia num botequim um ovo duro.

Mas a tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado. Sendo assim, obediente adoecia, sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado. Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavra “realidade” não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus.

Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. Rezava mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e portanto Ele não existia.

Acabo de descobrir que para ela, fora Deus, também a realidade era muito pouco. Dava-se melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmara leeeenta, lebre puuuuulando no aaar sobre os ooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, o vago era o de dentro da natureza.

E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica. Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo menos isso: muletas. Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro.

Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada.

O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era pequena – farofa seca – e pensava que fora feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que susto.

Nunca se queixava de nada, sabia que as coisas são assim mesmo e –

quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Juro que nada posso fazer por ela. Afianço-vos que se eu pudesse melhoraria as coisas. Eu bem sei que dizer que a datilógrafa tem o corpo cariado é um dizer de brutalidade pior que qualquer palavrão.

(Quanto a escrever, mas vale um cachorro vivo).

Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício. Ela quis mais porque uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é? Não havia meio – pelo menos eu não posso – de obter os multiplicantes brilhos em chuva chuvisco dos fogos de artifício.

Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com estremecimento de prazer: será que ele vai me matar?

Se a moça soubesse que minha alegria também vem de minha mais profundo tristeza e que tristeza era uma alegria falhada. Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra.

E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos.

Mas como as roia quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo.

E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.

Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não marcharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida?

Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro em contato forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.

A nordestina não acreditava na morte, como eu já disse, pensava que não – pois não é que estava viva? Esquecera os nomes da mãe e do pai, nunca mencionados pela tia. (Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da Ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei.) Continuando.

Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava

“hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para das anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse a precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação.

Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. Ouvira também a informação de que o único animal que não cruza com filho era o cavalo.

— Isso, moço, é indecência, disse ela para a rádio.

Outra vez ouvira: “Arrepende-te em Cristo e Ele te dará felicidade”. Então ela se arrependera. Como não sabia bem de quê, arrependia-se toda e de tudo. O pastor também falava que vingança é coisa infernal. Então ela não se vingava.

Sim, quem espera sempre alcança. É?

Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha.

Vivia de si mesma como se comesse as próprias entranhas. Quando ia ao trabalho parecia uma doida mansa porque ao correr do ônibus devaneava em altos e deslumbrantes sonhos. Estes sonhos, de tanta interioridade, eram vazios porque lhe faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem o saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais.

Mas tinha prazeres. Nas frígidas noites, ela, toda estremecente sob o lençol de brim, costumava ler à luz de vela os anúncios que

recortava de jornais velhos do escritório. Colava-os no álbum. Havia um anúncio, o mais precioso, que mostrava em cores o pote aberto de um creme para pele de mulheres que simplesmente não eram ela.

Executando o fatal cacoete que pegara de piscar os olhos, ficava só imaginando com delícia: o creme era tão apetitoso que se tivesse dinheiro para compra-lo não seria boba. Que pele, que nada, ela o comeria, isso sim, à colheradas no pote mesmo. É que lhe faltava gordura e seu organismo estava seco que nem saco meio vazio de torrada esfarelada. Tornara-se com o tempo apenas matéria vivente em sua fonte primária. Talvez fosse assim para se defender da grande tentação de ser infeliz de uma vez e ter pena de si. (Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos.)

Em todo caso o futuro parecia via a ser muito melhor. Pelos menos o futuro tinha a vantagem de não ser o presente. Sempre há um melhor para o ruim. Mas não havia nela miséria humana. É que tinha em si mesma uma certa flor fresca. Pois, por estranho que pareça, ela acreditava. Era apenas fina matéria orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe o que respiro.

Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro de vida. (Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.)

Será que entrando na semente de sua vida estarei como que violando o segredo dos faraós? Terei castigo de morte por falar de

uma vida que contém como todas um segredo inviolável? Estou procurando danadamente achar nessa existência pelos menos um topázio de esplendor. Até o fim talvez o deslumbre, ainda não sei, mas tenho esperança.

Are sens