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condição

de

liberdade

e,

simultaneamente, aprisionamento.

Esta nostalgia de uma integração total com o Cosmos confere uma certa tragicidade ao projeto do narrador. Pois ao mesmo tempo

em que sabe que é um ser independente e gosta de sê-lo, anseia por uma identificação completa com o outro, por uma comunicação direta, sem obstáculos, o que acabaria anulando a sua individualidade, a sua autonomia.

A vivência de culpa, como se houvesse um erro fundamental a ser sanado, desponta desde o primeiro subtítulo do livro — “A culpa é minha” — e sempre retorna. É ela um dos sintomas deste desgarramento do homem no mundo que, vendo cerradas as portas de acesso à unidade originária, vai investigar, solitário, a dinâmica de sua existência individual. A escolha de Macabéa, anônima,

“incompetente para a vida”, integra essa determinação, que inclui a busca de regressão ao inumano (“Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira”) e a expiação de uma possível culpa.

O narrador, perpassado por toda sorte de indagações sobre o ser e o existir, atormentado pela incompletude e pela dualidade da natureza humana para as quais as respostas são precárias, converte a busca em sua única certeza. Daí decorrem pelo menos dois movimentos centrais da narrativa.

Primeiro, como toda busca e toda pergunta são busca de algo e pergunta para alguém, o narrador, para saber, tem de desdobrar-se, tem de dialogar. Aquilo que, em uma situação comunicativa banal, passa despercebido projeta-se para o narrador como condição essencial do ser: apreender a si mesmo inclui o confronto com o outro.

Ao mesmo tempo, essa projeção traz implícito o retorno para si mesmo, quando se tenta unificar em um único sujeito individual os elementos que estão presentes nos outros seres do Universo. Entre estes dois movimentos há uma tensão permanente no interior da obra. O narrador mantém com seu interlocutor (seja ele Deus, o leitor ou Macabéa) uma postura ambivalente de identificação e afastamento.

Enquanto artista, aproxima-se de Deus, ambos criadores, e, ao fazê-lo, de cena forma humaniza-O e diviniza a si mesmo. Ao mesmo tempo, no entanto, Deus permanece enquanto figura abstrata, dominadora que corporifica a idéia de totalidade e nisto constitui um ente demoníaco, diante do qual o homem, condenado a se expressar em palavras e fadado a morrer, se apequena (“Esse vosso Deus que nos mandou inventar”). O leitor ora é alguém com quem se solidariza, mesmo que na dor ou desamparo, ora é alguém de quem quer distância. E Macabéa, se é nordestina como ele, dele se afasta pelo abismo social que os separa.

Em meio à tensão entre homem e mundo é que surge o debate em torno da palavra. Sendo o narrador um escritor, o diálogo será mediado pela palavra. Só que, tal como a consciência, a palavra é faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo em que constitui um instrumento de aproximação há o risco de a palavra do artista

“abusar de seu poder” e aniquilar a palavra de Macabéa. Disso resultaria o fracasso dessa experiência ficcional, o que, no caso, significaria o fracasso do seu projeto de escrever enquanto projeto existencial.

Por tudo isso, A hora da estrela acha-se mergulhado no desassossego da ausência de sentido de tudo e de todos. É um livro de caça. O narrador-escritor está diante da morte de Deus enquanto horizonte de sentido no homem e para o homem e, ao mesmo tempo, padece da figura poderosa do Criador. Vai ele, então, vasculhar a sua interioridade que, no entanto, sempre lhe escapa. Vai ele indagar o sentido da existência de Macabéa e sua tosca manifestação de vida.

Nesta verdadeira viagem põe a nu a sua imagem de escritor e denuncia a mentira de uma palavra transparente, “verdadeira”, usada como forma de comunicação entre os homens e do homem consigo mesmo. Essa trajetória aproxima Clarice Lispector de outros escritores modernos, como Fernando Pessoa, que colocaram sob suspeita a comunicação direta.

A perspectiva social vai assim se definindo. A reflexão sobre o projeto ficcional em A hora da estrela será o meio pelo qual denuncia as máscaras sociais que encobrem a crise fundamental do indivíduo, alienado de si em rígidos papéis sociais. Escrever o livro é forma de autoconhecimento (“Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido”), levado às últimas conseqüências quando elege como heroína alguém tão inexpressivo como Macabéa. Escrever implica em desnudar-se e aceitar a dor envolvida neste processo; escrever Macabéa significa enfrentar o desamparo na palavra que tenta ajustar-se à essência da natureza do ser que constrói na forma de personagem.

O narrador-escritor coloca desde o início o seu drama ao afirmar: “sou meu desconhecido”. Para responder a esta falta de sentido põe à mostra a sua condição de artista. Desmistifica o seu lugar de pessoa eleita, “Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto.” ironiza a dificuldade de inserção do escritor na sociedade, “Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim,” desmascara o preconceito contra a escritora mulher, “Aliás — descubro eu agora — também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria.

Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas: e põe em cheque até mesmo a importância de seu trabalho diante da manifestação de vida:

“(Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo)”.

A ironia empregada pelo narrador nos leva, no entanto, a um outro aspecto, que a existência mesma do livro confirma: o crédito atribuído à ficção como via de acesso à compreensão do mundo.

Outras passagens do livro também mostram que existe um outro modo de narrar, mais difícil, por certo, mas que permite provocar um

novo olhar sobre a vida.

“ O seu método de trabalho configura-se como um verdadeiro ritual de iniciação (“Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as mãos uma na outra para ter coragem”), que consiste em eliminar o supérfluo porque só assim poderá captar “as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela”. A sua atitude diante de Macabéa tem continuidade na atitude diante da linguagem. Para falar da moça terá de “não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco”, vestir-se “com roupa velha rasgada” tudo para se no nível da nordestina”. Ao travestir-se não pretende ocultar-se em disfarce, mas fazer de si um terreno propício para que a voz e a presença de Macabéa ganhem existência sem traição, mesmo sabendo que corre o risco de uma perda de comunicação nos moldes canonizados.

Vê-se, portanto, que o narrador-escritor tece um paralelo entre uma certa postura física, espiritual e ética e a postura diante de seu instrumento de trabalho, a palavra, que “não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”. Para tal, opõe a palavra sem sentido, alienada ou ilusória, que ele descarta, e a palavra-expressão, nomeadora: “Mas ao escrever — que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma palavra”. A hora da estrela consiste em uma verdadeira peregrinação da escuta e da fala, ao longo da qual o escritor tenta construir, a partir do limo de uma pessoa-formiga (Macabéa) e de sua própria pessoa-gigante-de-consciência, uma estrela-pessoa e uma estrela-palavra. Assim, uma pessoa rala e muda é recolhida pelo olhar arguto de um escritor desorientado que, conduzido pela palavra e desconfiando dela, dá uma forma e um destino a si próprio e à moça nordestina. Essa busca faz com que fixe duas metas aparentemente contraditórias: a simplicidade em uma história que se quer “exterior e explícita, sim, mas que contém segredos” e a aproximação entre palavra e silêncio.

O narrador-escritor, tal como o poeta francês Baudelaire

vagando pelas ruas de Paris, vã no deserto da cidade do Rio de Janeiro a decadência do ser humano através de Macabéa, representante das “milhares de moças espalhadas por cortiços” que

“não notam sequer que são facilmente substituíveis (...)”. Como Baudelaire, ainda, sente-se atraído por esse mundo sórdido e precário. O artista será aquele que vê por detrás das máscaras, que se inclui nessa sociedade cruel e aniquiladora e que se compraz na denúncia. Os alvos favoritos serão os leitores, Deus e todo o ambiente agressivo em que se vive e do qual normalmente se desvia o olhar. Nessa perambulação constata que algo poderia ter vingado, mas não vingou, o que é dito no livro, por duas vezes, de uma maneira que nos faz lembrar o verso conhecido de Manuel Bandeira, em seu Pneumotórax: “Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero, E agora só queria ter o que eu tivesse sido e não fui.” (p. 36), “A gargalhada era aterrorizadora porque acontecia no passado e só a imaginação maléfica a trazia para o presente, saudade do que poderia ter sido e não foi (p. 48).

Na primeira vez, refere-se ao escritor; na segunda, a Macabéa.

Por aí pode-se inferir que essa vivência não está restrita a uma realidade particular, e sim coletiva. Com uma perspectiva mais ampla até, porque tem como pano de fundo o encontro do mundo e seu Deus. A ousadia do desmascaramento se reflete também na meticulosidade com que o grotesco e a feiúra de Macabéa são tratados. O escritor a descreve “de ombros curvos como os de uma cerzideira”, com “o corpo cariado”. Era “uma acaso, um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal”.

O interesse pelo feio e pelo grotesco é mais um dado de ligação desta obra com a tradição da modernidade, que não trata o feio apenas como elemento cômico, de inferioridade moral, mas eleva-o ao plano dos valores metafísicos. Coisa incompleta e discordante, o feio afirma o fragmentário da vida. Macabéa, “ matéria orgânica é exemplo concreto da existência ara o Nada, sobretudo porque expõe,

apenas com maior evidência, uma ausência de sentido que atinge a todos. O escritor tenta penetrar nessa feiúra extrema no intuito de recobrar o que ela ainda guarda de estrela, de idealidade. O grotesco vem exprimir o encontro violento do divino com o diabólico. O autor procura “danadamente achar nessa existência pelo menos um topázio de esplendor”(grifo nosso), algum brilho que irá avivar o contraste, e insuficiência do real.

Macabéa, em tudo e por tudo, é o oposto do herói épico. Sua trajetória e vida aponta para a inviabilidade dos grandes feitos na sociedade moderna. Retomando um conceito do crítico alemão Walter Benjamin, pode-se afirmar que ela sequer teve uma experiência de vida que a memória um dia pudesse ou soubesse resgatar. No máximo um canto de galo faz com que só lembre da terra da infância, mas este também é um território espúrio. Proveniente de um meio rude, órfã de pai e mãe, criada a pancadas pela tia, Macabéa não teve propriamente uma história pessoal. Felicidade para ela é um conceito oco. De índole passiva, torna-se presa fácil dos mitos e produtos da indústria cultural. Admira as grandes estrelas do cinema e sente-se fascinada pelos anúncios publicitários.

As notícias descosidas da Rádio Relógio integram este contexto alienante, dentro do qual o cotidiano se faz em um tempo meramente físico, desprovido de uma ação subjetiva que com ele interaja numa proposta de transformação. Inexiste passado; inexiste projeto futuro.

O quotidiano de Macabéa confirma, em cada detalhe, a sua inabilidade e seu despreparo para o enfrentamento mais elementar diante das dificuldades inerentes à vida. Pouco habilitada para o trabalho; fracassa também no amor. A sua única conquista amorosa, o desajeitado Olimpo, foge-lhe das mãos como água. Quando já parece esgotada a denúncia de sua fragilidade, mais um pormenor desponta como se, boneca animada, Macabéa estimulasse as forças negativas do mundo, acentuando o seu lugar de vítima, até o desenlace trágico do atropelamento. A estória de Macabéa se resume

à sobrevivência quase inumana, pois, para tudo o que se sente e deseja, não dispõe de palavras para expressar.

Assim; o testemunho mais veemente de sua falta deposse sobre si mesma e sobre o mundo é a maneira como lida com a palavra. Ou ela se priva da palavra e permanece em um silêncio que não é opção, mas maneira precária de ser (em oposição ao silêncio enquanto momento de linguagem, de que fala Sartre); ou ela fala em dissonância. Sempre se expressa inadequadamente ou mostra interesse por palavras e conceitos reveladores de sua condição existencial e social mas que, descontextualizados, não a levam ao autoconhecimento, e que lhe vale a magia secreta que termos como designar, mimetismo, efeméride, renda per capita, conde se somente despertam nela uma curiosidade infantil? O próprio nome adverte ara um contrasenso, pois ela em nada se aproxima da índole heróica dos macabeus, povo guerreiro na história dos hebreus.

A perspectiva estética vem a propósito de evitar o falseamento da realidade. O narrador-escritor escolhe uma nova maneira de olhar e uma nova postura diante do narrar, indicadas no livro como distração e flash fotográfico. Em ambos destaca-se a idéia do relance, de uma súbita visão que desarma, permitindo que se apreenda algo que resiste a ser descoberto, As analogias entre palavra e sonho, pedra e silêncio vão na mesma direção.

Os sonhos deixam fluir “a penumbra atormentada” —

atormentada porque toca na verdade, que “é sempre um contato interior e inexplicável”. A aventura paradoxal dessa ficção consiste em pôr às claras algo que se caracteriza pela obscuridade. Para conseguir a integração entre palavra e sentido trata a primeira , como um corpo a ser trabalhado e põe à frente o seu próprio corpo a captar os sinais ocultos do ser: “Eu não sou um intelectual escrevo com o corpo”“.

Esta solidificação dos fatos se faz por uma leitura da história do Nordeste sem identidade em Macabéa è pela articulação entre sua

obra e a história literária brasileira. Abdica de ser modernoso, satiriza a “história com começo, meio e gran finale seguido de silêncio e de chuva caindo”, estabelece um diálogo com a literatura de cordel, em que o Nordeste se fala, e a literatura que fala o Nordeste.

Por este último confronto, escolhe o nordestino que mudou de espaço, desenraizou-se, perdeu o respaldo de seu grupo, bloco estigmatizado e mudo na vida da grande metrópole. Comovido, o narrador se desvincula do padrão de interpretação “realista”, deixando vazar a sua ternura e seu desespero por suas personagens nordestinas, Macabéa e Olimpo. Reescreve, assim, a famosa frase de Euclides da Cunha — “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” —

para “O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdão”. Se o interesse pela figura do nordestino se mantém, ela exige, no entanto, uma nova dicção: a da palavra-pedra, da linhagem do poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto. A “palavra tem que parecer com a palavra”, pois o escritor se apaixonou “por fatos sem literatura — fatos são pedras duras(...)”. Como para Cabral, há um aprendizado com a pedra, uma adesão à dureza dos objetos que serve para restituir a natureza própria das coisas e chamar a atenção para o processo de nomeação.

O leitor é levado a apreender as coisas por dentro e o narrador, tentando traduzi-las assim, chega ao paradoxo de converter o silêncio em seu alvo-limite, pois seria a forma mais direta e concreta de atingir a plenitude do sentido das coisas: o silêncio neutralizaria os ruídos que impedem uma visão mais autêntica do fatos. O silêncio assusta Macabéa porque nele há a “iminência da palavra fatal”, pode desencadear o contato com o mistério e despertar para um modo diferente de existência. Assim como o murmúrio e a reza, o silêncio desloca o homem do esquecimento de si próprio e faz com que viva o

“oco da alma”, O silêncio provoca a angústia de se descobrir como simples estar-no-mundo, entregue a si mesmo, desamparado da

firmeza que o senso comum lhe oferece.

O silêncio constitui a manifestação extremada da linguagem esvaziada, mas que emite novas significações. Como desdobramento da relação entre palavra e silêncio articula-se uma outra, entre palavra e música. A referência à música impregna todo o texto, pontuando-o de fio a pavio. Isso mesmo: sublinhando o seu fio, a sua tessitura; marcando-lhe o alvo, limite, ponto de explosão.

Ela está presente desde o prefácio, ao qual, terminada a leitura, somos impelidos a voltar para melhor entender a relação que mantém com a narrativa como um todo, a significação da música e outras questões relativas à proposta ficcional do livro. “A intrigante Dedicatória do Autor (Na verdade Clarice Lispector) nos apresenta um ser duplo. Uma das faces, externa, masculina neutra, sugere uma categoria ou função; a outra face, mal escondida nos parênteses, é a de Clarice Lispector, pessoa individualizada. Ao colocar entre ambas a expressão “na verdade” , somos tentados a confrontar as duas imagem. Mas este ser não pode ser visto como um ou outro lado. É fruto da articulação de ambos. Este ser múltiplo chama a atenção para a situação da ficção enquanto jogo de máscaras, onde o foco irradiador de verdade é posto sob suspeita e a própria idéia de verdade aflora como ponto de reflexão. Logo se percebe que há uma proposta lúdica, cabendo-nos aceitar o jogo de dissimulação inerente à ficção. Nesta, a verdade não está em um ou outro lugar, a começar pela autoria do livro. Para tudo haverá uma gama bem grande de opções. Se uma verdade existe, ela se dá na multiplicidade de versões que um fato, estória ou pessoa podem fazer evocar. A ficção é este jogo. Na literatura, jogo feito com linguagem.

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